
A palavra "existir", no dicionário, significa viver ou estar presente. Em um contexto mais profundo, na filosofia, por exemplo, esse conceito representa a ideia de como algo ou alguém se relaciona com o mundo e as pessoas ao seu redor. Isso, de certa forma, parece uma definição simples, mas não para indivíduos que têm suas autenticidades anuladas. Cercada pelo ódio, a população LGBTQIAPN enfrenta, todos os dias, os olhares preconceituosos e as violências verbais e físicas, que podem trazer sérios problemas psicológicos e emocionais.
Imagine ser reprimido, simplesmente, por não poder ser quem você é. Poucos sabem, mas o preconceito mata. No Brasil, em 2023, morreram de forma violenta 230 pessoas LGBTI, segundo um dossiê publicado pelo Observatório de Mortes e Violências LGBTI , número que corresponde a uma morte a cada 38 horas.
Diante de tantas questões envolvendo esse tema, o Congress on Brain, Behavior and Emotions, que aconteceu em Fortaleza, na semana passada, trouxe a importância do debate sobre a saúde mental em grupos minorizados, como é o caso da população LGBTQIAPN . Presente na palestra, Saulo Vito Ciasca, médico psiquiatra e professor, destaca a necessidade de respeitar as diversidades, bem como compreender que elas existem.
"Celebrar a diversidade significa celebrar a vida de qualquer pessoa. Para termos uma sociedade justa, igualitária, equitativa, é importante que a gente flexione as próprias crenças e valores. É, ainda, necessário educar a população em relação a esses conceitos. Acredito que a educação é importante e, quando falamos em educação, existem, também, dispositivos legais, porque hoje em dia a LGBTfobia é considerada crime, assim como o racismo. As pessoas que não foram propriamente educadas precisam ser punidas", explica.
Mais do que isso, é crucial entender os efeitos negativos que esse ódio é capaz de causar. De acordo com o especialista, a teoria do estresse de minoria (EM), muito consagrada no ramo da psiquiatria, afirma que todos possuem circunstâncias na vida que podem produzir desfechos complexos à saúde, em especial aqueles que têm menores espaços e poderes na sociedade.
"Quando a pessoa está no status de minoria, ela passa por estresses adicionais que envolvem discriminação, estigma, abuso e violência. Isso também produz uma internalização de atitudes sociais negativas, ou seja, a pessoa passa a acreditar que ela é inferior, que tem algo negativo nela", destaca. E essa crença acompanha o indivíduo, fazendo com que ele ou ela se sintam insuficientes, errados por serem quem são. Quadros como transtornos de ansiedade e depressão podem ser comuns quando essa dificuldade em se autoaceitar surge.
Vontade de viver
Errado, pecado, não é normal. Essas são, possivelmente, as três frases mais proferidas por aqueles que não aceitam formas "diferentes" de viver a vida. Lucas (nome fictício), 23 anos, cresceu reprimindo o que sentia, tentando consertar o que não necessitava de conserto. Por questões religiosas, talvez, escondeu-se entre os sentimentos que floresciam em seu coração. "Após anos de terapia, hoje posso dizer que, apesar de eu não sofrer com aceitação, ainda sinto o impacto disso relacionado à autoconfiança e à dificuldade de me relacionar, por achar que eu tenho que seguir um padrão", conta.
Conforme o tempo passa, o "peso" fica mais leve, sobretudo quando se descobre que não há nada de equivocado em tentar viver de acordo com o que acredita. "Contudo, é inevitável não sentir o impacto disso na nossa saúde mental", ressalta. Lucas busca trabalhar a autoestima, a autoconfiança e o amor-próprio, virtudes que lhe foram tiradas por um mundo problemático, mas que é incapaz de reconhecer que o problema está em si.
O medo sempre esteve presente, mas foi vergonha e constrangimento os sentimentos que mais fizeram parte da jornada do jovem até aqui. "Abrir essa pauta é um enorme tabu para quem está se aceitando. Isso está muito relacionado com o fato de eu ter tido uma visão completamente distorcida sobre o que é ser LGBT. Mas foi crucial eu receber ajuda de um profissional, pois a vontade que tinha de ser eu mesmo não era maior que a depressão que sofria", confessa Lucas.
Um fator primordial nesse processo de autodescoberta, que é tão difícil para algumas pessoas, é a família e os amigos. Nessa questão, mais especificamente, Lucas se sente abençoado, pois garante que foi muito mais compreendido do que julgado, enxergando no seu ciclo social um terreno fértil para que pudesse exercer seu direito de ser, sem nenhum medo. "É importantíssimo se distanciar de pessoas que reprimem quem você é, pois a rede de apoio são aqueles que te acolhem, mesmo que não entendam o que está acontecendo", finaliza.
Uma construção social
A LGBTfobia é uma construção social, política e histórica muito complexa. De acordo com o pesquisador Tony Bezerra, do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero — Nedig/Ceam/UnB — muitos estudiosos têm se debruçado sobre esse tema para tentar compreender as causas mais profundas do preconceito contra a população LGBTQIAPN . "A minha pesquisa de doutorado, desenvolvida no Departamento de Sociologia da UnB, aponta que o conservadorismo religioso cristão tem um papel muito importante nessa história", esclarece.
Isso, para o especialista, porque o Brasil é um país que foi colonizado pelo Império Português juntamente com a Igreja Católica. No século 17, há registros de que um indígena homossexual foi assassinado pelo Estado com um tiro de canhão. "Foi a pena de morte aplicada contra o indígena Timbira do Maranhão pelo simples fato de ele amar outros homens", acrescenta. Daí em diante, foram muitas perseguições e assassinatos contra LGBTQIAPN perpetradas pela igreja junto com o Estado, até hoje há políticos conservadores que defendem a repressão contra essa população.
Tal pensamento é fruto de um processo histórico no qual o fundamentalismo cristão usa Deus para tentar justificar os seus preconceitos. "Eles buscam dividir a sociedade em duas categorias estanques: homens e mulheres, no qual o homem tem o papel de dominar e subjugar a mulher", aponta. Se o homem se recusa a cumprir esse papel de dominador, ele é taxado de gay, excluído, marginalizado; por outro lado, se a mulher se recusa a ser dominada pelo homem, a mesma é taxada de lésbica, bruxa, histérica, revoltada, feminista, insubordinada.
Essa segregação de gênero, na visão do especialista, tem como resultado o machismo e a LGBTfobia, por isso que há tantos feminicídios e tantas discriminações contra pessoas LGBTQIAPN nos dias de hoje no Brasil. "É uma herança maldita que continua viva", acredita Tony. Para tentar mudar isso, há os movimentos feministas e LGBTQIAPN , para conscientizar a sociedade sobre a necessidade de mudança e de respeito à diversidade.
"É preciso que todes deem os seus testemunhos para dizer que as LGBT são pessoas trabalhadoras, batalhadoras, que esse preconceito precisa acabar imediatamente, porque nós, LGBT , merecemos respeito, temos os mesmos direitos que as outras pessoas. Nós não queremos nenhum privilégio, só queremos ter os mesmos direitos que todo mundo tem, essa é a mensagem que nós queremos passar nesse mês do orgulho."
Revista do Correio
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