
Estima-se que, no Brasil, de 10 a 15 milhões de pessoas sofram com algum tipo de transtorno alimentar. Os números estão mais presentes entre adolescentes e jovens adultos, por causa de padrões de beleza ou de dietas restritivas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 4,7% da população brasileira sofre de transtorno de compulsão alimentar, taxa que representa quase o dobro da média mundial (2,6%).
Anorexia e bulimia nervosa, transtorno da compulsão alimentar (TCA), transtorno alimentar restritivo evitativo (TARE), alotriofagia e transtorno de ruminação estão entre os mais reconhecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Além do impacto emocional, a condição provoca desnutrição, perda muscular e alterações metabólicas. Nesse contexto, especialistas reforçam que a nutrição ocupa lugar central no tratamento, porque influencia diretamente humor, energia, saciedade e resposta a medicamentos e terapias.
A alimentação não é apenas uma fonte energética: é comunicação bioquímica. É essa premissa, repetida por profissionais que lidam com transtornos alimentares, que explica por que a nutrição precisa estar no centro das estratégias terapêuticas. Para a nutróloga comportamental Esthela Oliveira, a alimentação é literalmente o combustível do nosso cérebro, tudo o que o paciente ingere interfere na produção de neurotransmissores, como serotonina e dopamina, modulando humor, atenção e regulação emocional.
Ela enumera nutrientes que considera indispensáveis no manejo clínico: ômega-3, complexo B, magnésio, zinco e ferro, além do triptofano. Segundo Esthela, corrigir carências nutricionais faz parte da recuperação, porque essas deficiências pioram sintomas psiquiátricos, fadiga e a chamada "névoa mental", dificultando a adesão ao tratamento.
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Outro ponto destacado por Esthela é o papel da microbiota intestinal — responsável pela maior parte da serotonina produzida pelo corpo. Restaurar esse equilíbrio com fibras, probióticos e alimentos minimamente processados ajuda a regular emoções e saciedade. Ela ressalta ainda que ultraprocessados, alimentos hiperpalatáveis e ricos em açúcares geram picos de glicose e quedas bruscas do humor, agravando episódios de compulsão.
A nutricionista clínica e comportamental Ana Cristina Pereira complementa explicando que o cérebro necessita de nutrientes de boa qualidade para se manter ativo e estável. "Vitaminas do complexo B, vitamina D e ômega-3 têm evidências crescentes de associação com menor risco de depressão e ansiedade." Para ela, o tratamento nutricional não se resume a calorias: exige escuta ativa, avaliação do comportamento alimentar e um plano individualizado que leve em conta rotina e realidade socioeconômica.
Quando a doença ultrapassa o prato
O nutricionista Bruno Correia explica que áreas do cérebro responsáveis por recompensa e autocontrole respondem diretamente ao que o paciente consome. Em situações de desregulação, a má alimentação agrava o funcionamento emocional e reduz a capacidade de controle dos impulsos. Ele alerta que dietas restritivas elevam o risco de compulsão. "O que precisamos construir é uma curva de aprendizado com o paciente, não punitiva."
No campo emocional, a psicóloga cognitivo-comportamental Rejane Sbrissa lembra que a terapia identifica gatilhos e padrões que levam ao uso da comida como regulador. Sem a reorganização promovida pela nutrição — planejamento alimentar, rotina e recuperação da saciedade — muitos avanços psicológicos não se sustentam. "A chance de sucesso eleva-se consideravelmente quando há trabalho integrado entre psicoterapia, psiquiatria e nutrição", diz.
A história de Jéssica Monteiro (nome fictício), 22 anos, ilustra as consequências quando o distúrbio se instala sem diagnóstico precoce. Aos 12 anos, ela começou a vomitar com frequência. Com o tempo, parou de se nutrir. Chegou a pesar 32kg e precisou ser internada com desequilíbrio eletrolítico e desnutrição severa. Hoje, mesmo após tratamento multidisciplinar, convive com sequelas e intolerâncias. "Não digo que estou curada; aprendi a conviver melhor", afirma.
Rede de apoio e desafios
A privação e os comportamentos compensatórios causam dificuldades de absorção de micronutrientes, desregulam hormônios e deixam o paciente vulnerável emocionalmente. Protocolos costumam incluir exames laboratoriais, reintrodução gradual de calorias, educação alimentar e estratégias para evitar recaídas — tudo de forma individualizada.
Além disso, fatores socioeconômicos, como a insegurança alimentar, interferem na manutenção dos transtornos. Quando a comida falta, o organismo ativa mecanismos de armazenamento e busca alimentos calóricos quando eles aparecem, reproduzindo os efeitos de dietas extremas. O estresse constante aumenta o cortisol e desregula fome e saciedade. Estudos apontam que pessoas em insegurança alimentar têm de três a cinco vezes mais risco de desenvolver transtornos.
Na prática, especialistas recomendam refeições regulares, alimentos ricos em fibras e ômega-3, e suplementação quando necessária. Texturas e variedades alimentares são reintroduzidas gradualmente, e a microbiota recebe atenção especial com fibras, prebióticos e probióticos.
A escassez de equipes multidisciplinares no SUS e a desigualdade de acesso dificultam o tratamento. É nesse cenário que atua a Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (AstralBR), com psicoeducação, grupos de apoio e orientação. Segundo a integrante Renata Rennó, cerca de 60 pessoas são acompanhadas diretamente, e milhares alcançadas pelas redes com materiais informativos. "Há sede de conhecimento entre profissionais, mas pouca oferta de equipes integradas", afirma.
Do ponto de vista preventivo, medidas que podem ser adotadas em escolas e postos de saúde incluem educação nutricional, garantia de segurança alimentar para famílias vulneráveis e rotinas alimentares regulares na infância. Já na comunicação clínica, profissionais recomendam evitar linguagem punitiva e explicar, de forma simples, por que determinadas escolhas ajudam na recuperação.
Para pacientes como Jéssica, a nutrição trouxe um horizonte de convivência mais leve com a comida. "Hoje, me permito comer pizza e hambúrguer, mas com controle; sei que exageros ainda mexem comigo", relata.
Profissionais reforçam que a recuperação corporal depende de bases nutricionais sólidas. Corrigir carências, retomar peso de forma segura, regular sono e saciedade e reduzir inflamação são pré-requisitos para que a terapia funcione. Sem um corpo alimentado adequadamente, o cérebro não tem condições de aceitar mudanças profundas.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

Revista do Correio
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