
Quedas frequentes, letra difícil de ler, cansaço para escrever ou para brincar com outras crianças podem parecer apenas desatenção, falta de prática ou "desajeitamento". Porém, em muitos casos, esses sinais não indicam preguiça ou desinteresse, mas, sim, um transtorno neuromotor pouco reconhecido no Brasil: a dispraxia, também chamada de transtorno do desenvolvimento da coordenação (TDC). Por compartilhar sintomas com transtorno do deficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA), disgrafia, dislexia e até dificuldades sensoriais, a condição ainda é facilmente confundida e subdiagnosticada, atrasando o tratamento e impactando a vida escolar e social de diversas crianças.
A dispraxia interfere na capacidade do cérebro em planejar e executar movimentos voluntários. A criança entende a tarefa, mas não consegue transformar intenção em ação coordenada. "O planejamento motor é como um GPS embutido no nosso corpo. Quando ele não opera bem, tudo fica mais trabalhoso", explica a fisioterapeuta Roberta Lemos. Por isso, mesmo sabendo o que fazer, o corpo "não responde com fluidez", resultando em movimentos duros, hesitantes e pouco funcionais.
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Esse esforço extra faz com que atividades simples sejam mais cansativas. A fisioterapeuta Raquel Furquim observa que a criança "pode até ter força suficiente, mas precisa gastar muito mais energia para organizar o corpo e executar o movimento". Segundo ela, a repetição não garante automatização, e é isso que diferencia a dispraxia de falta de treino ou preguiça. "O movimento não vira hábito sozinho. É como se o cérebro precisasse ensinar o corpo passo a passo toda vez."
Na escola, os impactos aparecem na escrita, na lentidão para copiar e na dificuldade em manusear objetos, como tesoura ou cola. Nas aulas de educação física, há frustração com esportes que exigem tempo de reação, coordenação e planejamento rápido. "Essas crianças são frequentemente vistas como desajeitadas. Muitas vezes, são as últimas a serem escolhidas para o time", afirma o neurologista infantil Paulo Lobão, membro da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil. Segundo ele, isso pode afetar a autoestima de maneira significativa.
Características
- Dificuldade em aprender e planejar movimentos, resultando em descoordenação motora.
- Problemas com tarefas diárias, como abotoar roupas e amarrar cadarços.
- Dificuldades na escola, como escrever, participar de aulas de educação física e manusear materiais.
- Pode afetar a percepção espacial, a postura e o equilíbrio.
Dados no Brasil
- O país não possui levantamento oficial, mas estimativas internacionais indicam que 5% a 10% das crianças podem ser afetadas
Dificuldades ao longo do tempo
- Na escola: impacto na escrita, leitura funcional e atividades que exigem coordenação complexa
- Na socialização: risco de isolamento por frustrações em esportes e brincadeiras
- Na autonomia: necessidade de apoio para tarefas simples, como comer e se vestir
Utensílios adaptados
Para alimentação
- Talheres ponderados/angulados/flexíveis
- Pratos com bordas altas ou ventosas
- Copos com tampa, duas alças ou base larga
Para escrita e atividades manuais
- Lápis com grip e engrossadores
- Tesouras com molas internas
- Pranchetas antiderrapantes
- Guias de escrita e papel com linhas marcadas
Grupos ou fatores de risco
- Prematuridade e baixo peso ao nascer
- Fatores genéticos
- Problemas no desenvolvimento cerebral
- Complicações na gravidez (exposição a toxinas, estresse materno e uso de álcool ou drogas)
- Gênero (em meninos são mais comuns)
- Condições coexistentes (TDAH, autismo, dislexia)
Famosos com TCD
- O ator Daniel Radcliffe (conhecido pelo seu papel como Harry em Harry Potter), revelou que descobriu a dispraxia em 2008. Com problemas escolares e dificuldade de amarrar seu cadarço
- A modelo e atriz Cara Delavigne tem dispraxia TDAH. Os sinais incluíam dificuldades na escola
- O fotógrafo David Bailey e seus filhos também sofrem de dispraxia. Os indícios foram dificuldades com a escrita e ortografia e seu jeito "desajeitado"
Quais profissionais procurar
- Fisioterapeuta
- Fonoaudiólogo
- Neuropediatra/neurologista
- Terapeuta Ocupacional
Palavra do Especialista
1 - Porque a dispraxia ainda passa despercebida e é pouco diagnosticada no Brasil?
No Brasil, a dispraxia ainda é pouco diagnosticada, principalmente pela falta de conscientização entre pais e professores, que muitas vezes interpretam as dificuldades motoras como simples desinteresse ou que a criança é “desajeitada” mesmo. Além disso, há uma escassez de profissionais qualificados para diagnosticar e reabilitar, como neurologistas infantis e terapeutas ocupacionais. O processo diagnóstico é complexo e exige avaliações detalhadas. Muitas vezes, os sintomas são minimizados ou confundidos com outras condições mais conhecidas, como TDAH ou TEA, dificultando a identificação correta.
2- Quais sinais simples pais e professores podem observar para buscar avaliação neurológica?
É importante que pais e professores fiquem atentos a sinais de dispraxia, como quedas frequentes, dificuldade em pegar bolas e demoras em tarefas simples de autocuidado, como amarrar sapatos. Na escola, a letra ilegível, a lentidão ao copiar e a desorganização dos materiais são sinais comuns. Comportamentos como evitar desafios motores e expressões negativas sobre si mesmo também são preocupantes. É essencial lembrar que crianças com dispraxia são, em geral, cognitivamente competentes, mas enfrentam desafios significativos em atividades motoras.
3 - Qual diferença real a intervenção precoce faz na vida desse indivíduo?
A intervenção precoce tem um impacto significativo na vida de crianças com dispraxia. Quanto mais cedo a criança receber apoio, maiores serão suas chances de desenvolver habilidades funcionais e melhorar a autoestima. O cérebro das crianças mais novas possui alta plasticidade, permitindo a formação de novas conexões neurais. Isso facilita o aprendizado de habilidades motoras, promovendo a inclusão nas atividades escolares e sociais, além de reduzir frustrações e riscos emocionais. A intervenção precoce também ajuda na adoção de hábitos saudáveis, prevenindo o sedentarismo e melhorando a qualidade de vida a longo prazo. Dessa forma, a intervenção não só melhora habilidades práticas, mas também potencializa o desenvolvimento emocional e social da criança.
Dr. Paulo Lobão é neurologista infantil e membro da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil.
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