Especial

O belo e o ancestral se encontram em uma viagem ao Peru

Uma viagem pelo Peru, país vizinho repleto de história, belezas naturais e gastronomia reconhecida mundialmente

Quando recebi a notícia de que em uma semana seria enviado para uma pauta no Peru, decidi não pesquisar nada sobre o roteiro e a programação que me enviaram. Afinal, pensei, não é sempre que se ganha a oportunidade de ter uma viagem planejada do início ao fim, com rotas, hospedagens, restaurantes, museus e passeios, pelas mãos de profissionais da arte de viajar: a Latam e a PromPeru, órgão do governo peruano responsável pela promoção do turismo no país. Então, fui às cegas. Hoje, após sete dias inesquecíveis no país vizinho, acredito que a escolha pela surpresa e pelo inesperado foi acertada. O susto, não há como negar, é uma emoção marcante. Ainda mais quando se dá pelo belo, pelo grandioso, pelo ancestral. E tudo isso há de sobra no Peru.

Os encantos e as surpresas de Lima

Nossa jornada começa em Lima, a metrópole que abriga mais de 10 milhões de pessoas e onde, apesar da constante presença de nuvens e névoa no céu, não chove. A estiagem permanente se dá por fatores geográficos, como a Cordilheira dos Andes e a corrente de Humboldt, que carrega as águas geladas da Antártica pela costa pacífica da América do Sul até o litoral peruano. Apesar da falta de água, o clima é ameno e o ar é sempre úmido. 

Ainda no primeiro dia, depois de ser recebido no lobby do AC Hotel Lima Miraflores pela guia de turismo peruana Suzanne Morales, que me acolheu com um caloroso “seja bem-vindo ao meu país”, parti com o grupo de jornalistas e comunicadores que me acompanhou nesta jornada para uma visita ao sítio arqueológico de Huaca Pucllana.

Localizado no coração de Lima, no bairro de Miraflores, um dos mais turísticos da capital, e bem ao lado de prédios e construções modernas, a visita impressiona. Trata-se de uma pirâmide do período pré-Inca — um local sagrado com mais de 1.500 anos que permaneceu escondido debaixo do que se acreditava ser um morro até meados dos anos 1980, quando escavações começaram a definir o perímetro do achado arqueológico. 

Em Lima, segundo Suzanne, há centenas de sítios arqueológicos de diferentes épocas do período pré-colonial. Mas o que faz da Huaca Pucllana uma visita tão marcante é a qualidade da preservação e o tamanho da estrutura. Ali, ainda é possível ver com nitidez a forma como os espaços eram divididos e a engenhosidade dos arquitetos. Toda a pirâmide, bem como os muros que delimitam as praças ao redor dela, foi construída a partir da ‘técnica do livreiro’, que consiste na disposição de tijolos maciços lado a lado, como se fossem livros em uma estante, com pequenos espaços entre eles.

A técnica permite que, em terremotos, os tijolos possam se mover ao longo da estrutura e absorver o impacto dos tremores. E a prova de que ela funciona estava ali, após mais de 1.500 anos de sismos constantes. 

Além disso, estão preservados, na forma de manchas nas paredes, vestígios de barro derretido e buracos no chão, os locais que os antigos peruanos usavam para cozinhar. Evidências apontam que a pirâmide foi utilizada para o sacrifício de mulheres, lhamas, tubarões, bem como para ritos funerários. Segundo historiadores e arqueólogos, a estrutura foi inicialmente construída pelo povo Lima, que habitou a região litorânea do Peru no período pré-incaico, entre os séculos 100 e 700 d.C. A atual capital peruana foi batizada em homenagem a essa civilização. 

No entanto, por volta do século 700 d.C., quando a região foi abandonada pelos Limas em razão da seca intensa, a Huaca Pucllana foi ocupada por outra cultura, os Huari. Uma característica marcante desse povo são os processos de mumificação que utilizavam. Os chamados fardos funerários eram espécies de cestos nos quais os mortos eram colocados em posição fetal e envoltos em cordas e tecidos ornamentais para, em seguida, serem enterrados no chão ou entre as paredes da pirâmide, onde os corpos eram rodeados de oferendas.

Após o passeio pelo sítio arqueológico, que conta ainda com um museu, tivemos um jantar no restaurante que leva o mesmo nome do local sagrado, com direito a vista privilegiada para a pirâmide. Ali, tivemos o primeiro de muitos encontros com o que há de melhor na gastronomia peruana, a qual, ao longo das últimas décadas, consolida-se como uma das mais diversas e sofisticadas do mundo. Entre os pratos marcantes, os Anticuchitos de corazon, um espetinho de coração de boi que acompanha choclo (milho gigante) e batatas douradas, além da sobremesa Ofrenda a la tierra, inspirada nos rituais cerimoniais dos antigos habitantes da Huaca Pucllana e elaborado com ingredientes nativos, como lúcuma, fruta típica da região andina e muito popular no Peru, e cacau.

Fotos: Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - O sítio arqueológico de Huaca Pucllana fica no coração de Lima

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - O Restaurante Huaca Pucllana tem vista privilegiada para a pirâmide do sítio arquológico

Dia de feira, gastronomia e museu 

No dia seguinte, partimos para uma visita a uma tradicional feira de rua no bairro de Surquillo, onde está em exibição toda a variedade e riqueza dos ingredientes tradicionais peruanos. Dos 32 climas existentes no mundo, 27 são encontrados no Peru: uma variedade que se reflete na diversidade de frutos, grãos e tubérculosopções. No país (e isso é uma informação que se ouve com certa frequência das bocas dos peruanos, orgulhosos), há mais de 50 tipos de milho, desde o morado (roxo) até o choclo (gigante) e 4 mil variedades de batata.Na feira, também provei o figo-da-Índia, um fruto vermelho vivo que nasce de um cacto comum em regiões desérticas no continente americano. É doce, leve e traz inúmeros benefícios à saúde.  

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - Tradicional feira de rua no bairro de Surquillo

Em seguida, fomos para uma aula de culinária e coquetelaria peruana oferecida pelo chef Enrique Quispe, no restaurante Ayni, em Miraflores. Aprendemos as técnicas para o preparo do pisco sour, tradicionalíssimo drinque peruano feito a partir do pisco, um destilado à base de uva com cerca de 40% de volume alcoólico: a cachaça peruana.

O chef também ensinou a preparar uma causa acevichada, outro prato típico do país, de origem pré-colonial, que consiste em um bolinho feito com uma variedade de batata original do Peru e ají (tipo de pimentão laranja, de gosto amargo-adocicado), recheado com abacate e acompanhado por algum tipo de proteína, que pode ser camarão, peixe, frango ou carne vermelha. No nosso caso, foi o ceviche, talvez o mais renomado dos pratos peruanos, feito de cubos de peixe fresco cru, pimenta dedo-de-moça e cebola roxa, tudo marinado no caldo conhecido como leche de tigre (leite de tigre), uma mistura de alho, gengibre, limão (muito limão), aipo, coentro e pimentas. 

A aula incluiu o preparo do lomo saltado — carne bovina refogada em wok, servido com arroz e batatas fritas ou douradas. O prato, extremamente popular no Peru, é herança da tradição chifa — mistura da culinária chinesa e peruana. Além das tradições indígenas e espanholas, a gastronomia local recebeu influências de diferentes outras culturas, como africana, japonesa e chinesa. 

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - Menu degustação no Resturante Huaca Pucllana

Levemente embriagados de pisco, era hora de visitar uma exposição. Prontamente, fomos conduzidos ao Museu Larco, lar de algumas das mais valiosas relíquias arqueológicas das diferentes civilizações que habitaram o Peru. Ali, estão exibidos totens, esculturas, vasos de cerâmica, armas e ferramentas utilizadas em sacrifícios humanos, facas cerimoniais, joias de cobre, prata, ouro e turquesa, bem como tecidos repletos de ornamentos, alguns dos quais utilizados para envolver corpos mumificados e datados de mais de mil anos a.C.

Outra presença marcante na coleção são os dois crânios trepanados. Uma das cirurgias mais antigas de que se tem conhecimento, a trepanação consistia na abertura de uma cavidade circular no crânio e era utilizada para tratar hematomas, sangramentos, enxaquecas, problemas de pressão intracraniana e convulsões. No procedimento, as civilizações andinas utilizavam ferramentas como facas cerimoniais de obsidiana (um tipo de vidro vulcânico natural) ou metal. 

Há ainda, no Museu Larco, uma múmia Huari (aquela mesma cultura que preparava os fardos funerários). O exemplar, de mais de mil anos, é extremamente preservado e, de acordo com testes de raios X, trata-se de um menino que, após a morte, foi envolto em cordas, tecidos e recebeu uma máscara funerária e longos cabelos postiços para fazer a passagem até o mundo dos mortos.

Mas a parte mais impressionante do Larco é a coleção de mais de 4 mil garrafas funerárias. Um verdadeiro labirinto de relíquias arqueológicas, desenhado por estantes de quase 4 metros de altura abarrotadas de exemplares. As garrafas representam boa parte do legado histórico dos povos pré-colombianos dos Andes e chegavam, em alguns casos, a representar retratos fiéis do morto, feitos em argila ou metal.

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press -
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Passeio de bike e aula de coquetelaria

No dia seguinte, tivemos um tour gastronômico-cultural de bicicleta pelos bairros de Miraflores e Barranco, este, conhecido por ser a alma da boemia limenha. E andar de bicicleta em outro país é sempre uma experiência. Ao mesmo tempo em que é preciso se manter atento às dezenas de novos sinais de trânsito, a novidade e a efervescência da cidade capturam o olhar. Tanta coisa para ver. Mas o clima de Lima colabora. Mesmo nos momentos de maior intensidade do pedal, a sensação na pele é amena e o vento constante. Após passagem pelo Parque do Amor, à beira do Pacífico, onde se pode fazer um pedido e deixar um cadeado preso aos gradis e aos pés da consagrada escultura El Beso, do artista peruano Víctor Delfin, rumamos para Barranco, bairro onde mora o próprio escultor.

 

Marcus Benjamin Figueredo/CB.D.A.Press - Bajada de Baños, em Barranco

Em nossa rota, o tradicional boteco Canta Rana. Pelo que ouvi, o bar pertence a um argentino fanático pelo Racing. Não há como duvidar: há, em uma das paredes, uma camiseta da seleção albiceleste autografada pelo próprio Diego, além de dezenas de camisas históricas de times sul-americanos e europeus. Após minutos de busca incessante, encontrei o escudo do time amado — um exemplar de 2009, branco com um detalhe da manga em preto e em azul: não há dúvida, é o Corinthians do Fenômeno.

Depois de uma garrafa de Inka Cola e um ceviche, continuamos por mais alguns minutos de bicicleta e, já a pé, atravessamos a Ponte dos Suspiros. Segundo a tradição, é preciso prender o fôlego durante todo o tempo que se atravessa a ponte pela primeira vez para que um desejo seja realizado. De lá, uma parada no Javier, na Bajada de Baños, um reduto charmoso e cheio de bares de onde se pode ver o Pacífico, para um copo de chicha morada, uma versão não alcoólica do tradicional fermentado andino.

Bebemos ao som das lendárias valsas crioulas de Chabuca Granda, uma cantora tão adorada pelos peruanos que tem o rosto retratado na nota de 10 soles, a moeda local. É dela a composição de Fina estampa, sucesso na voz de Caetano Veloso. De lá, uma breve volta pelas praças e mercadinhos de Barranco, e partimos para o Indian Market, uma grande feira de artesanato e produtos tradicionais peruanos, boa parada para comprar lembranças e balas de coca, que viriam a ser úteis nos dias seguintes. E aqui fica a dica: pechinchar compensa. 

Após uma aula de harmonização e coquetelaria peruana no elegante Hotel B, onde aprendemos a preparar uma nova versão do pisco sour, além do basilisco, à base de gin e pepino, e do inka soul, que leva vodca, xarope de frutas vermelhas e suco de toranja, jantamos no restaurante do hotel. De entrada, pedi uma das iguarias mais populares do Peru: o cuy, o porquinho-da-Índia. Para o prato principal, um pirarucu na brasa, também típico das regiões amazônicas do Peru, onde é conhecido como paiche, e de sobremesa, a deliciosa Chirimuña, feita de chirimoya (um tipo de graviola) tostada. Divino. 

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No deserto e entre vulcões

No quarto dia, nossa aventura mudaria completamente de forma. Dos ares urbanos de Lima, partimos para a região andina ao sul do país, mais precisamente a Arequipa, no meio do deserto e rodeada por vulcões. Depois de um voo de pouco mais de uma hora (HIPERTEXTO), chegamos à cidade branca, que recebe essa alcunha devido ao uso característico do sillar, uma rocha vulcânica de cor clara que e pode ser vista nas fachadas das construções históricas por todo o centro da cidade.

Mas a marca maior da paisagem arequipeña são os três míticos vulcões que circulam a cidade: Misti, Chachani e Pichu Pichu. Segundo a lenda, o jovem Misti (o mais recente dos três vulcões) ficou apaixonado pela beleza de Chachani, mas ela, por sua vez, estava enamorada por Pichu Pichu, o mais antigo, que não retribuiu o amor da donzela. As lágrimas tristes de Chachani, na forma de chuva, formaram, então, a Laguna de Salinas, um lago salgado nos arredores de Arequipa.

A região entre os três vulcões foi ocupada pelos espanhóis a partir de 1540, ainda no início da colonização, por ser um oásis no meio do deserto e por estar posicionada entre o litoral e os andes, em uma altitude intermediária de 2.300 metros acima do nível do mar. Arequipa é uma das três cidades peruanas protegidas pela Unesco, ao lado de Lima e Cusco.

Marcus Benjamin Figueredo/CB.D.A.Press - Arequipa fica no meio do deserto e rodeada por vulcões

Nossa primeira parada foi a Basílica Catedral de Arequipa, localizada na Plaza de Armas. Também construída com a pedra vulcânica branca, a Catedral resistiu, ao longo dos séculos, a incêndios, erupções vulcânicas e terremotos que chegaram a derrubar parte da estrutura. Ela abriga um dos maiores órgãos de tubo da América Latina, obra do artista belga François Bernard Loret, até hoje em funcionamento e tocado aos domingos.

Ao final do tour, chegamos ao terraço no topo da igreja, de onde se tem uma vista privilegiada de toda a cidade e dos vulcões que a rodeiam. Lá de cima, pensei, vemos uma cidade árabe. A arquitetura espanhola teve grandes influências dos mouros, povos islâmicos do norte da África que invadiram a Península Ibérica na Idade Média. Misturada com a vegetação desértica, com a visão dos vulcões e com o ar seco, o que temos é uma paisagem que, guardadas as devidas particularidades, em muito poderia lembrar uma vila marroquina. 

Aos domingos, a Plaza de Armas é palco de desfiles cívicos no quais marcham grupos escolares, bandas marciais e, às vezes, como no domingo em que estivemos na cidade, comunidades locais que exibem o Wititi, a tradicional dança do amor do Vale do Colca, nosso próximo destino. Praticado desde o período das culturas pré-incaicas e considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, o Wititi é uma das principais manifestações folclóricas daquela região e está associada a cerimônias de celebração de colheitas e ritos de passagem para a vida adulta. Na dança, homens e mulheres vestem longos vestidos bordados, muito rebuscados e coloridos, além dos típicos chapéus da região andina e, em alguns casos, adornos para esconder o rosto. 

Marcus Benjamin Figueredo/CB.D.A.Press - A imponente Catedral de Arequipa

Da praça, caminhamos para o Mosteiro de Santa Catarina da Siena — uma vila labiríntica no coração de Arequipa que, originalmente, ocupava uma área de 20 mil m². Ali, a partir de 1579, viviam centenas de freiras, monjas e donzelas religiosas. Apenas as filhas das famílias mais abastadas da região podiam ingressar no convento, já que era necessário o pagamento de um dote que hoje seria equivalente a 250 mil dólares, um investimento almejado por muitos, uma vez que, além do prestígio de ter uma filha educada e dedicada a Deus, o dote garantia a salvação de toda a família no Juízo Final. 

O mosteiro é dividido em diferentes praças, ligadas por ruelas estreitas, cujos muros podem ser pintados de tons terrosos alaranjados, azuis vivos e branco. Por essas ruelas, vemos lindos jardins floridos e passamos por diferentes capelas e pelas celas onde as freiras viviam na abstinência e na contemplação. Ali há grandes padarias, uma lavanderia a céu aberto, que utiliza a água canalizada de um rio, e um cemitério. 

De avião

A Latam conta com diversas opções de voos diretos para Lima, que partem de cinco aeroportos brasileiros: Brasília, Guarulhos (SP), Galeão (RJ), Curitiba e Porto Alegre. E a partir de dezembro, incluirá Florianópolis. A companhia ainda oferece uma ampla malha doméstica dentro do próprio Peru, com 20 rotas regulares internas que conectam as principais cidades turísticas, incluindo Arequipa e Cusco.

Nas montanhas andinas

No dia seguinte, levantamos cedo para uma expedição por terra. Rumamos para as entranhas das montanhas andinas, o Vale do Colca, onde encontraríamos banhos termais com águas vulcânicas, terrazos agrícolas dos períodos pré-incaicos e Inca, povoados isolados, lhamas, alpacas e a ave mítica que habita aquelas regiões: o condor-dos-Andes, a maior ave voadora do mundo, que ocupa um papel central no folclore e na cosmovisão das populações andinas.

Foi nessa parte da viagem que tivemos o primeiro contato com as folhas de coca, a planta utilizada há milênios no combate ao mal de altitude e em cerimônias religiosas. Até os dias de hoje, habitantes dos andes utilizam a folha de coca para ler o futuro. No período pré-colonial, a coca era reservada às elites incas. Com a chegada dos espanhóis, o uso das folhas começou a ser difundido nas outras camadas da população, já que trazia propriedades como ganho de energia e diminuição da fome e da sede. Passou, então, a ser utilizada como ferramenta de aumento de produtividade dos povos escravizados na região. 

Nossa rota rumava para o norte e contornava os vulcões Chachani e Misti. De lá, passamos por regiões desérticas marcadas pela presença de diferentes tipos de cactos e, depois de algumas horas, chegamos ao povoado de Patahuasi, a 4.100 metros de altitude. Lá, paramos para degustar um mate andino feito com folha de coca, muña e outras ervas nativas: uma parada importante para preparar o corpo para a altitude.

No povoado, também conhecemos o Wayno, um tradicional ritmo musical andino, e visitamos um bazar onde os produtos de diferentes cooperativas são vendidos, principalmente roupas típicas de lã de alpaca e vicuña, uma outra espécie de camelídeo andino que produz a fibra mais fina do planeta — um cachecol de pelo de vicuña pode chegar a custar US$ 10 mil. A alguns quilômetros de Patahuasi tivemos nosso primeiro encontro com os camelídeos. Toda a região é uma reserva ambiental, e os bichos vivem soltos, geralmente em grupos. Em alguns locais à beira das estradas, grupos de lhamas e alpacas domesticadas repousam pacificamente ao lado de pequenas lojinhas, e turistas podem tirar fotos e até fazer carinho nos bichos. Mas ao sinal de movimentos bruscos ou ameaçadores, eles podem reagir com cusparadas!

O tempo nos Andes muda radicalmente em questão de minutos. Se há alguns quilômetros (e algumas centenas de metros de altitude abaixo) atravessamos desertos quentes, agora, de súbito, nos vimos em meio a uma nevasca. Estávamos nos aproximando da marca dos 5 mil metros de altitude, na beira da cratera do vulcão Chucara, hoje inativo, quando fomos surpreendidos pela neve. Outro susto, e a paisagem, que era árida, agora estava tingida de branco.

 

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - A paisagem, que era árida, agora estava tingida de branco

Após uma viagem que totalizou seis horas, chegamos ao nosso destino. No Vale do Colca, um sistema complexo de terrazos, organizados como escadarias, foram utilizados há milênios para dominar as encostas das montanhas e possibilitar o plantio de diferentes alimentos, como milho e batatas, e também a domesticação de animais. A maioria continua firme e forte até hoje e ainda é utilizada na agricultura.

O Vale do Colca é o lar da dança folclórica Wititi, que testemunhamos em Arequipa. É, também, a região onde foi encontrada, nos anos 1990, a múmia da menina Juanita, que teria sido oferecida em sacrifício há mais de 500 anos para acalmar os deuses e os vulcões, que naquele período castigavam a região. A muña, tipo de menta andina que já cruzou nosso caminho algumas vezes, era muito utilizada pelos povos das montanhas para o embalsamento de múmias. Vale dizer que as múmias mais antigas já encontradas no planeta, que datam de mais de 5 mil anos a.C. (ou seja, 2 mil anos mais antigas que as egípcias) pertencem à cultura Chinchorro, um povo que habitava a região entre o sul do Peru e o norte do Chile.

Na região do Colca, há ainda grandes cordilheiras e vulcões ativos até os dias de hoje, como o Sabancaya, do qual vimos fumaça sair do cume. Como se não bastasse, estão na região as duas montanhas de onde fluem os riachos glaciais identificados como as fontes mais longínquas do Rio Amazonas: os montes Mismi e Qewicha.

Depois de uma rápida passagem pelo povoado de Chivay, chegamos à nossa hospedagem: Aranwa, pueblito encantado del Colca, um hotel recluso, incrustado no vale, entre o Rio Colca e os terrazos pré-incaicos. Ali, provei pela primeira vez a carne de alpaca, iguaria local servida com uma leve salada de quinoa, outro cereal andino. Na sequência, seguimos para as piscinas de águas termais, extremamente relaxante, ainda mais diante daquela vista. Mas é importante que o banho não ultrapasse os 30 ou 40 minutos, já que parcela dos minerais presentes na água são absorvidos pelo corpo e, em excesso, podem causar algum mal estar, como dor de cabeça.

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - O cânion é um dos cinco mais profundos do mundo

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Em busca do mítico condor

No último dia de viagem, caímos da cama bem cedo. Era dia de ir à procura do condor, a ave mítica que habita aquelas montanhas e costuma sair para caçar ainda nas primeiras horas da manhã. Além de ser a maior ave voadora do mundo, podendo chegar aos 3,3 metros de envergadura, é parte central dos mitos e cosmologias dos povos andinos. Depois de atravessar pontes, um túnel e contornar montanhas cujos topos estavam tingidos de neve, chegamos ao mirante do Cânion do Colca, por volta das 8h30. 

A vista ali é um dos grandes sustos que se pode ter: o cânion é um dos cinco mais profundos do mundo. Os números exatos da profundidade variam de acordo com o ponto de medição, mas pode chegar a mais de 3 mil metros — bem maior que os 1,8 mil metros do Grand Canyon, nos EUA. Mesmo nos pontos mais baixos, por onde corre o Rio Colca, ainda são marcados mais de 2 mil metros de altitude em relação ao nível do mar, e nas bordas mais altas, ultrapassa os 4 mil.

O céu era de um completo azul e o Sol andino castigante, mas não foi preciso muito tempo até que o primeiro condor despontasse voando entre as encostas das montanhas. Neste momento, quando se pode ouvir crianças e adultos gritando “El condor! El condor!”, todos os olhos se voltam para o cânion. De lá, é possível avistar as aves voando em rasantes pelo rio ou subindo até que ultrapassem as montanhas nevadas no horizonte. Algumas voam solitárias, enquanto pares realizam um balé, girando em torno do próprio eixo enquanto planam quase sem bater as asas. A imagem é um presente. 

Divulgação - O condor é ave símbolo da região

De alma lavada, rumamos de volta a Arequipa. Na estrada, ainda passamos pelos povoados de Yanque e Maca, onde estava sendo realizada uma cerimônia de bênção dos bois que partiriam para ajudar no arado do campo. Lá, aproveitamos para provar o colca sour, um coquetel típico do Vale do Colca, feito com pisco e sancayo, um fruto de cacto nativo. Como dessa vez não estava nevando, conseguimos parar no mirante mais alto daquela região, a 5 mil metros de altitude, de onde se pode ver os cumes de vários vulcões, como o Hualca Hualca, com 6.025m de altitude, o Sabancaya, com 5.980m, e o Ampato, com 6.200m.

No mirante, entre o vento frio e os longos suspiros provocados pelo ar rarefeito da altitude, estávamos no ponto mais alto da viagem. Lá, há vários amontoados de pedra deixados por moradores e viajantes, denominados saywa ou apacheta. Cada um, Suzanne, nossa guia, nos explicou, é uma oferenda aos deuses. Uma tradição que remonta aos tempos dos incas e simboliza um pedido para que se entre no território das montanhas em segurança. Foi meu último susto nesta primeira viagem ao Peru, que certamente não será a última. Tupananchiskama!

Marcus Benjamin Figueredo/CB/D.A.Press - É preciso ir cedo tentar visualizar o voo do condor, ave símbolo da região

*O repórter viajou a convite da Latam 

 

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