COMPORTAMENTO

'E os namoradinhos?': como lidar com perguntas invasivas no Natal

Questionamentos sobre amor, filhos e carreira revelam como a falsa intimidade familiar pode ferir mais do que unir. Especialista dá o caminho para lidar da melhor forma com a situação

Para muitos brasileiros, a ceia de Natal vai além da comida farta e dos reencontros familiares. Ela também traz um ritual menos celebrado: as perguntas invasivas sobre amor, filhos e carreira. “Quando vem o bebê?”, “vai passar em concurso?”, “e os namoradinhos?”, essas perguntas surgem quase como parte do cardápio, mas podem deixar marcas profundas em quem escuta.

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Segundo o psicanalista e especialista em comportamento humano Lucas Scudeler, sócio-fundador da Pandora Treinamentos, essas abordagens não são aleatórias. Elas nascem de uma falsa sensação de intimidade criada pelo ambiente familiar. “O Natal gera uma ‘ilusão de intimidade’. As pessoas confundem vínculo familiar com autorização para perguntar qualquer coisa, atravessando limites que pertencem à vida íntima”, explica.

Embora muitas vezes venham disfarçadas de brincadeira ou preocupação, essas perguntas podem ter um impacto emocional significativo. “Elas despertam culpa e sensação de fracasso, especialmente em quem já está em fases sensíveis da vida”, afirma Scudeler. “São questões aparentemente inofensivas, mas que reativam feridas silenciosas e reforçam a ideia de que a pessoa está ‘atrasada’ ou ‘devendo algo para o mundo’.”

Relacionamentos, maternidade e carreira costumam ser os principais alvos porque funcionam como verdadeiros “medidores sociais de valor”. “A sociedade transforma escolhas íntimas em troféus públicos. Quem não segue o roteiro padrão vira alvo de cobrança, mesmo estando em paz consigo”, pontua.

Curiosidade, cuidado ou invasão?

Existe, sim, uma linha clara entre demonstrar interesse e invadir a privacidade — e ela passa pelo respeito ao tempo do outro. “O cuidado acolhe. A invasão exige respostas”, resume o psicanalista. “Quando não há espaço real para um ‘não’, aquela pergunta deixou de ser afeto.”

Dentro da família, impor limites costuma ser ainda mais difícil. O psicanalista contextualiza dizendo que isso ocorre porque há uma hierarquia emocional construída ao longo da vida. “Muita gente aprende que desagradar é o mesmo que perder amor ou pertencimento. Por isso, dizer ‘não’ vira uma ameaça de rejeição”, explica.

A boa notícia é que é possível se proteger emocionalmente sem gerar conflitos familiares. Para Scudeler, o primeiro passo é entender que educação não significa submissão. “Respostas curtas, firmes e neutras protegem sem agredir. A culpa surge quando a pessoa acredita que deve explicações sobre a própria vida.”

Algumas estratégias ajudam a atravessar a ceia com mais tranquilidade, segundo o especialista:

  • Antecipar respostas simples e repetíveis, evitando improvisos sob pressão;
  • Não justificar demais, já que excesso de explicação abre espaço para novas invasões;
  • Mudar de assunto de forma consciente;
  • Usar humor leve, sem ironia ou ataque.

E quando o familiar insiste? “A repetição calma é a melhor resposta. Quanto menos emoção você coloca, menos combustível o outro tem. A insistência fala mais do desconforto de quem pergunta do que de quem responde”, afirma.

Proteção emocional não é conflito

Estabelecer limites não significa criar um clima ruim à mesa. “A proteção emocional é silenciosa e firme. O conflito nasce quando há ataque, ironia ou tentativa de convencer o outro”, diferencia.

Para quem já sabe que será alvo dessas perguntas, a preparação emocional faz diferença. “É alinhar expectativa com realidade: isso pode acontecer, e você não precisa se defender. A surpresa é o que machuca. Quando a pessoa entra preparada, a pergunta perde poder.”

Um aprendizado que pode mudar o futuro

Ensinar crianças e adolescentes sobre limites também é uma forma de transformar essa cultura a longo prazo. “Quem aprende cedo a dizer ‘não’ sem culpa vira um adulto que não confunde amor com acesso”, conclui Scudeler. “Isso constrói relações baseadas em respeito, não em invasão.”

No fim das contas, o Natal pode, e deve, ser um espaço de encontro. Mas encontro não precisa significar exposição. Respeitar limites também é uma forma de afeto.

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