
Na manhã de 19 de junho, Francisco Ramalho, 65 anos, morador do distrito de Monte Alto, em Padre Bernardo (GO), vivenciou a materialização de uma tragédia anunciada. No município, a 109 quilômetros de Brasília, um aterro sanitário privado desmoronou, causando um desastre ambiental sem precedentes na localidade. Os resíduos provenientes da montanha de lixo desceram encosta abaixo, atingindo nascentes do Córrego Santa Bárbara e provocando graves danos ambientais. Diante da situação, a prefeitura decretou estado de emergência e voltou a pedir o fechamento definitivo do lixão.
"Tem dia que chegamos e tem 300 urubus empilhados nas cercas de tanto fedor", comenta Ramalho sobre a realidade enfrentada desde 2016, quando o aterro entrou em operação. Há pelo menos nove anos, a comunidade convive com o chorume (líquido resultante da decomposição do lixo) que escorre pelo solo, o mau cheiro constante e os animais contaminados — efeitos do acúmulo descontrolado de resíduos. Ramalho, dono da Fazenda São Sebastião, que faz divisa com a área afetada, conta que o problema é antigo e foi se agravando. "Tenho essa propriedade há 35 anos e nos últimos tempos tive que furar um poço artesiano para não usar mais a água contaminada", relatou ao Correio.
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Os danos aos recursos hídricos da região causados pela tragédia são os mais preocupantes. A secretária de Meio Ambiente de Goiás, Andréa Vulcanis, classificou como "muito crítica e muito grave" a situação ambiental no município. "Esse lixo atingiu o curso da água e isso provoca — com esse chorume que, agora, começa a escorrer para dentro da água — muitos impactos ambientais. São danos gravíssimos", alertou. A prefeitura estima que dos 15 mil habitantes do distrito, os mais atingidos são os moradores dos bairros Itapety, Ouro Verde e região da Vendinha, além das famílias ribeirinhas.
Filho de Francisco e um dos milhares de afetados, Rafael Ramalho, 41, carrega nos olhos a melancolia de um paraíso perdido com a implacável chegada do aterro. "Tinha cachoeira, vinha gente da escola, trazia meus amigos para cá. Uma alegria só", recorda, com um sorriso breve ao vislumbrar a vida que um dia existia ali. Hoje, a realidade é um golpe duro: "Não tem mais peixe, o gado adoece, a água não serve mais".
Impacto
Na casa de Ana Maria Soares, 61 anos, a esperança virou resistência, mas que, aos poucos, vem diminuindo. O efeito do desmoronamento foi tamanho para ela, que pensa todos os dias em ir embora. "Meu sonho diário tem sido sair desse lugar. Mas quem vai querer comprar? Tá impossível viver aqui", desabafa. O imóvel, segundo ela, perdeu valor, e a vergonha de receber visitas virou parte da rotina. "Não posso servir um café, bolo ou fazer um churrasco por conta das moscas", lamenta, emocionada.
Moradora há décadas do distrito de Monte Alto, Ana Maria viu a qualidade de vida da família desmoronar junto com a pilha de lixo do aterro sanitário. Desde a instalação do lixão, viu-se obrigada a deixar de usar a água da região. Passou a comprar galões de água mineral e perfurou um poço. "Não podemos usar e nem confiar mais nessa água podre. Além disso, tem a fumaça branca constante vindo de lá, o cheiro forte e as moscas. E depois do desabamento, o mau cheiro aumentou muito", relata.
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Para especialista em meio ambiente o doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) Christian Della Giustina, o vazamento de lixo representa uma ameaça grave ao equilíbrio ambiental dos corpos d'água atingidos nos arredores do local. "O chorume é um líquido altamente poluente, rico em metais pesados, patógenos e coliformes, que altera o pH da água e favorece a solubilidade desses metais, tornando-os ainda mais móveis e tóxicos", explica. Segundo ele, essas alterações provocam um colapso no ecossistema aquático, matando peixes e organismos sensíveis à degradação da qualidade da água.
O especialista também chama atenção para a vulnerabilidade dos cursos d'água típicos do Cerrado. "São rios de baixa vazão, com pouco poder de diluição de poluentes. A fauna pode se contaminar ao consumir essa água, e há possibilidade de perda irreversível de biodiversidade A probabilidade de que o rio morra é real", afirma. Para ele, a resposta ao desastre foi lenta e inadequada. "Deveria ter havido um plano emergencial imediato. É preciso responsabilizar os envolvidos e iniciar urgentemente um programa de avaliação dos danos à biota", defende.
Emergência
O prefeito de Padre Bernardo, Joseleide Lázaro, decretou estado de emergência no município. A medida busca facilitar o acesso a recursos e a articulação com órgãos como a Defesa Civil, o ICMBio e o Ministério Público. "Nunca vimos algo assim. Estamos no sétimo dia do ocorrido e a situação ainda é crítica. A população precisa de respostas e soluções", afirmou ao Correio.
Segundo ele, o aterro funciona sob amparo de decisões judiciais, mas sem licenciamento ambiental válido. "Lá não é aterro sanitário, é um lixão. Começou a funcionar com licenças irregulares emitidas pela gestão municipal anterior. E nenhum município tem competência legal para autorizar isso", destacou o prefeito.
Outra preocupação é o risco de incêndio. Parte do lixo que deslizou pegou fogo, o que pode agravar a situação. "Se esse incêndio subterrâneo não for controlado agora, pode durar meses e gerar uma nuvem de fumaça tóxica. Nós acionamos o Corpo de Bombeiros e exigimos uma resposta imediata da empresa responsável", informou o prefeito.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fez uma vistoria no local em 20 de junho, com apoio de drones e equipe multidisciplinar, e identificou instabilidade na montanha de resíduos, com risco de novos desabamentos. Em 2023, o órgão recebeu uma denúncia de vazamento na lagoa de chorume do aterro. Embora a empresa tenha apresentado um plano emergencial, à época, o acompanhamento ficou sob responsabilidade estadual. Em janeiro de 2025, o órgão federal aplicou multa à empresa por descumprimento na entrega de relatórios obrigatórios. Apesar dos alertas e irregularidades, o aterro vinha funcionando amparado por decisões liminares da Justiça Federal.
A ação contou com a presença de representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad-GO) e da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Como medida emergencial, o local foi interditado e impedido de receber novos carregamentos de lixo.
O Correio tentou contato com a empresa responsável pela administração do aterro, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição. O espaço segue aberto para manifestação.
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