
O reajuste de 2,91% nas passagens de ônibus do Entorno, autorizado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que entraria em vigor hoje, foi adiado por 30 dias. O aumento afeta a rotina de cerca de 380 mil trabalhadores, que se deslocam diariamente para o Distrito Federal, e estava previsto desde fevereiro, mas já havia sido adiado após pressão dos governos do DF e de Goiás.
Apesar de mais esse adiamento, o debate sobre o impacto econômico do reajuste segue em pauta. Especialistas avaliam que o encarecimento do transporte teria reflexos diretos não apenas no orçamento das famílias do Entorno, mas também no mercado de trabalho e na economia brasiliense.
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Parte da força de trabalho do comércio, dos serviços e da construção civil no Distrito Federal vem das cidades vizinhas. Um aumento no custo diário do deslocamento poderia, segundo a Secretaria do Entorno, ser repassado de forma indireta aos empregadores, que teriam de arcar com auxílios maiores de transporte ou enfrentar o risco de perda de mão de obra.
"O aumento encarece o custo direto para os usuários e também onera empregadores, que arcam com o vale-transporte, o que pode, inclusive, desestimular a contratação de mão de obra residente em Goiás. Além disso, trata-se de um sistema que já apresenta problemas graves de qualidade: superlotação, atrasos e falta de infraestrutura adequada. O governo entende que o reajuste agrava um serviço já precário e amplia desigualdades sociais", explica o titular da pasta, Pábio Mossoró.
Entidades do DF compartilham da preocupação. Segundo o presidente do Sistema Fecomércio-DF, José Aparecido Freire, é preciso ponderar uma saída que não onere empregados e empregadores. "Um reajuste pode significar mais despesas, dificuldades para manter empregos e até frear novas contratações. É fundamental que se encontre uma solução equilibrada, que garanta o transporte acessível aos trabalhadores, sem comprometer a sustentabilidade das empresas."
Revolta
Entre usuários do transporte público do Entorno, o sentimento é de revolta. Moradora de Céu Azul, em Goiás, a copeira Ludmila de Almeida, 39, acredita que o aumento da passagem de ônibus irá prejudicar trabalhadores que vivem fora do DF. "As empresas já olham torto para quem mora em Goiás. Com a passagem mais cara, elas vão preferir contratar quem é do DF, que paga mais barato por ter integração. A gente acaba perdendo a vaga de emprego", reclamou.
Segundo ela, o gasto diário com transporte chega a R$ 15. "Pago a passagem do meu bolso, porque não sou registrada, e a diária não dá conta. Além de cara, a condução é lotada, você mal consegue se mexer", acrescentou. Ludmilla relata que sai de casa às 5h e leva mais de uma hora para chegar ao trabalho, no Lago Sul. "O transporte só piora, mas o preço só sobe. É injusto com a gente, que precisa trabalhar", desabafa.
Natasha Larissa Oliveira, 25, moradora de Águas Lindas, também teme o aumento nas passagens. Ela trabalha como cuidadora e afirma que a alta das tarifas compromete boa parte do orçamento. "Eu pego dois ônibus para ir e dois para voltar. Só de transporte, gasto cerca de R$ 600 por mês", contou. Sem auxílio para custear o deslocamento, ela diz que o valor sai integralmente do próprio bolso. O trajeto diário chega a quatro horas de viagem. "Enfrentei outros aumentos antes e o sentimento é sempre o mesmo: uma parte muito grande do salário vai só para a passagem", lamentou.
Morador de Luziânia, Francisco Batista de Souza, 56, diz que o aumento das passagens pesa no orçamento e não vem acompanhado de melhorias no transporte. "O impacto é grande, porque a passagem já é cara e ficará ainda mais complicado", afirmou. Segundo ele, a empresa onde trabalha como porteiro de condomínios residenciais não cogitou aumentar o vale-transporte para compensar o reajuste. "Nem tocaram no assunto, acaba saindo do nosso bolso", relatou.
Efeito cascata
Para o pesquisador especialista em Gestão Pública Robson Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), qualquer reajuste nas tarifas de ônibus do Entorno tem efeitos diretos sobre o orçamento das famílias de baixa renda. "A grande massa da população sobrevive com um ou dois salários mínimos. Quando você acrescenta alguns reais ao custo diário da passagem, esse valor, multiplicado pelos dias e pelas viagens de ida e volta, acaba sendo retirado de outros itens essenciais, como alimentação, saúde e vestuário", explicou.
Carvalho observa que a discussão sobre aumentos de tarifa vai na contramão de uma tendência que avança no Brasil: a implementação da tarifa zero. "Hoje, mais de 130 cidades adotaram esse modelo com resultados positivos para a população, para o comércio e para a mobilidade urbana. Em vez de onerar o trabalhador, o investimento público no transporte gratuito devolve qualidade de vida, movimenta a economia e garante circulação mais justa pela cidade", ressaltou.
Negociação
O secretário de Mobilidade do Distrito Federal, Zeno Gonçalves, afirmou que um ofício conjunto foi encaminhado pelos governos do DF e de Goiás ao ministro dos Transportes, Renan Filho, pedindo a prorrogação da medida por 90 dias. O prazo, explicou, seria necessário para concluir a formalização do consórcio interfederativo que deve assumir a gestão do sistema de transporte público entre as duas unidades da federação. A solicitação foi atendida parcialmente pela ANTT.
De acordo com o subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte da Secretaria-Geral de Governo de Goiás, Miguel Angelo Pricinote, e o secretário do Entorno do DF, Pábio Mossoró, as tratativas para a criação do consórcio avançaram entre os governos locais, mas seguem sem manifestação formal da União. "Em fevereiro, o governador em exercício de Goiás, Daniel Vilela, ao lado do governador do DF, Ibaneis Rocha, anunciou a intenção de criar o consórcio. Desde então, foram enviados ofícios ao Ministério dos Transportes e, mais recentemente, à Casa Civil da Presidência. Até agora, não houve resposta oficial sobre a adesão federal", destacaram.
Segundo os gestores, tanto o DF quanto Goiás possuem minuta do protocolo de intenções, projetos de lei e documentação técnica prontos para envio às respectivas Assembleias Legislativas. O que falta, afirmam, é a definição da União sobre como pretende participar — seja como integrante direto do consórcio ou delegando formalmente a gestão aos governos locais.
O modelo proposto prevê financiamento tripartite, com União, DF e Goiás dividindo os custos em partes iguais. No caso goiano, a contribuição anual seria de aproximadamente R$ 67 milhões. Embora ainda não exista previsão específica no orçamento, as secretarias trabalham em cenários para viabilizar o aporte a partir do próximo exercício.
Enquanto o consórcio não sai do papel, Goiás avalia medidas imediatas para conter o impacto do possível aumento da tarifa. Entre elas, está a desoneração do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o combustível utilizado pelas empresas do sistema semiurbano. "Essa iniciativa poderia neutralizar o efeito do reajuste sem repassar o custo ao usuário. Mas depende da confirmação oficial da ANTT sobre a aplicação do aumento", ressaltaram os secretários.
Valores médios caso o reajuste fosse aprovado:
Águas Lindas-Brasília: de R$ 10,85 para R$ 11,15
Planaltina de Goiás-Plano Piloto: de R$ 11,05 para R$ 11,35
Valparaíso-Brasília: de R$ 8,90 para cerca de R$ 9,15
Luziânia-Plano Piloto: de R$ 12,15 para R$ 12,50
Santo Antônio do Descoberto-Taguatinga: de R$ 9,65 para aproximadamente R$ 9,95
Saiba Mais
Custo para os empregadores
A Lei 7.418, que institui o vale-transporte e dá outras providências, diz, no parágrafo único, que "o empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico". Com base no salário mínimo atual, que é de R$ 1.518, e levando-se em consideração uma pessoa que more em Águas Lindas (GO) e se desloque para o Plano Piloto numa escala de trabalho 6x1 (trabalha seis dias e descansa um), ela teria um gasto mensal de R$ 585,90. Desse valor, o empregador teria que contribuir com R$ 511,02. Com o reajuste de 2,91%, esse valor saltaria para R$ 602,10.
Valores médios com o reajuste
Águas Lindas-Brasília: de R$ 10,85 para R$ 11,15
Planaltina de Goiás-Plano Piloto: de R$ 11,05 para R$ 11,35
Valparaíso-Brasília: de R$ 8,90 para cerca de R$ 9,15
Luziânia-Plano Piloto: de R$ 12,15 para R$ 12,50
Santo Antônio do Descoberto-Taguatinga:
de R$ 9,65 para aproximadamente R$ 9,95
Cidades DF
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