
Em apenas cinco dias, oito crianças foram vítimas de violência em diferentes regiões da capital federal. De um bebê de 4 meses a um pré-adolescente de 14 anos, todos os casos carregam o mesmo traço: crueldade. As situações incluem agressões físicas, psicológicas, abandono e negligência. Práticas ocorridas no espaço que deveria oferecer proteção e afeto; e cometidas, em grande parte, por quem tinha o dever de cuidar.
O caso mais recente foi domingo, no bairro Veredas, em Brazlândia. Militares chegaram a uma casa após receberem denúncias de vizinhos. Os relatos eram de que dois meninos, de 5 e 7 anos, estavam sozinhos na residência havia três dias, sem água e alimentação adequada, em condições insalubres.
Na casa, os PMs foram recebidos pelas próprias crianças e encontraram o espaço com acúmulo de lixo e mau cheiro. Segundo os moradores, a mãe saiu e deixou os filhos sozinhos por três ou quatro dias. Informalmente, as vítimas contaram que o comportamento da responsável era recorrente. Nos dias em que ficaram sós, uma vizinha foi a responsável dar comida aos menores.
Depoimento
A mulher foi à 18ª Delegacia de Polícia (Brazlândia) para prestar esclarecimentos depois de saber que o Conselho Tutelar havia levado os meninos. Ela, que relatou estar desempregada há um mês, negou ter deixado os filhos sozinhos. Disse ter saído de casa na sexta-feira para fazer uma faxina na casa de uma amiga e recebeu R$ 220 pelo serviço, que seria prolongado até sábado.
De acordo com a suspeita, ela combinou com uma colega para cuidar das crianças na sexta e, posteriormente, pagou R$ 100 para que outra mulher olhasse os filhos do fim de semana até a manhã de segunda-feira.
As crianças ficaram à disposição do Conselho Tutelar e foram entregues aos cuidados da avó. A conselheira tutelar Roberta Bonifácio detalhou como funciona o procedimento nesses casos. "O primeiro passo é realizar os encaminhamentos necessários para fazer o resgate e restabelecer o vínculo familiar. Além disso, notificar outros órgãos da rede para garantir atendimento psicológico e assistência social", explicou.
Segundo Roberta, a mãe não pode mais se aproximar das crianças. "Foram tomadas as medidas necessárias. Além disso, existe uma medida protetiva em desfavor dela." A 18ª DP investiga o caso como abandono de incapaz, no contexto da Lei Henry Borel. A mulher não foi presa em flagrante.
Garfo quente
Em 13 de agosto, um caso de agressão infantil foi descoberto por uma professora da Escola Classe 38, no P Norte, em Ceilândia. A docente estranhou o fato de o aluno, de 8 anos, assistir à aula em pé e pediu que o menino se sentasse. O garoto alegou que não conseguia. Estranhando o comportamento, a docente viu, no corpo do menino, vários machucados.
A professora denunciou o caso à polícia. Segundo o delegado-chefe da 19° DP (P Norte), Fernando Fernandes, a madrasta era a responsável pela agressão: ela usava um garfo aquecido para queimar a pele da criança, inclusive, nas nádegas.
Reféns
Outra característica comum nos casos abordados é a desestruturação familiar. Na terça-feira passada, um pai agrediu a esposa, a expulsou de casa e manteve os quatro filhos reféns, de 14, 7, 6 e 1 ano. Militares do Bope negociaram com o agressor por mais de duas horas. A operação foi finalizada com sucesso e o suspeito, preso.
Um dia depois, na quarta-feira, um homem agrediu o filho, um bebê de 4 meses, por não aceitar o fim do relacionamento com a mulher, no Riacho Fundo 1. O episódio somou-se a outras transgressões cometidas por ele no mesmo dia, como a violação de uma medida protetiva, que o proibia de se aproximar da residência da família. O bebê, com ferimentos na cabeça, foi encaminhado ao Hospital de Base.
No último dia 24, em plena luz do dia, um pai foi flagrado desferindo socos contra o filho de 12 anos, em uma rua movimentada do Gama. Uma testemunha tentou intervir e questionou o agressor, que rebateu com a pergunta: "Quem é você?".
Ao perceber a aproximação de uma viatura da PM, uma mulher pediu ajuda. Durante a abordagem, o homem alegou que tratava-se de uma "correção" e disse que o modo como educava a criança não dizia respeito a ninguém. O garoto apresentava lesões visíveis nos braços e nas pernas. Ele relatou ter apanhado após enviar uma mensagem de WhatsApp ao pai. O agressor foi detido.
Medidas
O advogado especialista em direito constitucional e penal Vitor Sampaio comentou as medidas que devem ser tomadas em caso de risco imediato. "(A Justiça) pode determinar o acolhimento institucional ou em uma família acolhedora e ordenar o afastamento imediato do agressor do convívio familiar, além de impor medidas de restrição de contato", disse.
Apesar dos avanços na legislação brasileira, o especialista aponta desafios. "O Judiciário pode decidir em poucas horas, mas a execução pode ser falha quando não há abrigos e famílias acolhedoras disponíveis. Esse hiato entre decisão judicial e efetivação prática contínua pode colocar a vítima em risco", destacou.
Saiba Mais
Três perguntas para
Amaury Andrade, advogado criminalista e professor de direito penal e processo penal.
Como a reincidência de casos de violência contra crianças no DF, em um curto período, pode ser explicada?
A propagação midiática de casos ajuda bastante, uma vez que pessoas acabam se identificando com fatos experimentados em relatos pretéritos. O sistema de proteção é eficaz. Mas os relatos precisam chegar aos órgãos de controle como: polícia, Ministério Público da Criança e Adolescente, Conselho Tutelar e Vara da Infância e Juventude.
Quais são os principais sinais que vizinhos, professores ou parentes devem observar para identificar uma criança ou adolescente em situação de risco?
Queda no rendimento escolar, sinais de tristeza e/ou depressão e ansiedade. A automutilação é um sinal de grande perigo e forte indícios de abuso, podendo chegar ao suicídio.
A curto e a longo prazo, quais medidas a sociedade e as autoridades do DF podem tomar para reforçar a rede de proteção e prevenir que esses crimes continuem acontecendo?
É fazer a rede funcionar sem falha: escola, posto de saúde, CRAS/CREAS, Conselho Tutelar, delegacia, MP e Judiciário conversando em linha direta. Treinar professor, agente de saúde e assistente social para identificar sinais e acionar escuta protegida, sem revitimizar a criança ou adolescente. Deixar a denúncia fácil e sigilosa, garantir atendimento médico e psicológico rápido, medida protetiva eficaz e, se preciso, afastar o agressor ou acolher a criança.
Cidades DF
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