Festival de Cinema

Festival de Brasília: a crítica do documentário 'Xingu à margem', que disputa Candangos

Longa particulariza drama coletivo, a partir do testemunho oral da ribeirinha Raimunda Gomes da Silva, numa condição ocasional de pária, ao tocar o dedo na ferida na desestruturação promovida pela construção da usina de Belo Monte

Xingu à margem -  (crédito: Wallace Nogueira e Arlete Juruna)
Xingu à margem - (crédito: Wallace Nogueira e Arlete Juruna)

Crítica // Xingu à margem ★★★★

Náufragos de um cenário individualista

Há um somatório de fortuna crítica estabelecido no encadeamento de filmes caros ao Festival de Brasília, em lista que inclui As hiper mulheres, O mestre e o divino, Martírio e A transformação de Canuto. Muitos são derivados do projeto Vídeo nas Aldeias, a exemplo de Xingu à margem (atração deste ano, comandada por Wallace Nogueira e Arlete Juruna), em competição. O longa particulariza drama coletivo, a partir do testemunho oral da ribeirinha Raimunda Gomes da Silva, numa condição ocasional de pária, ao tocar o dedo na ferida na desestruturação promovida pela construção da usina de Belo Monte (nas cercanias da paraense Altamira).

A transformação social prometida, veio, mas a reboque de ampla destruição, especialmente para 680 famílias de pescadores tidos como "resíduos de Belo Monte". Enquanto o reservatório da usina aglomera árvores mortas, com as raízes putrefatas, a deterioração se esparrama e desemboca numa semente para a rivalidade daqueles que, como diz um personagem, "não são inimigos, mas não são amigos": ribeirinhos e indígenas. A quebra de unidade — com denúncia da multiplicação de aldeias, embalada por interesses pessoais — afeta o circuito natural em que todos podiam viver da pesca e da roça.

Curiosamente, o espectador pode montar seu políptico de cinema: vem à memória filmes do Festival de Brasília como O tempo que resta (2019), da brasiliense Thaís Borges, em torno de madeireiros e grileiros da Amazônia; A invenção do outro (2022), Bruno Jorge, interditado pela Funai, e Lavra (2021), sobre descalabros em torno da mineração.

"Nenhum índio (sic) sozinho se manda, tem sempre liderança", observa Raimunda, testemunha da perda de resistência do povo dos arredores de Altamira, e da queda do que via como "um muro de Berlim" (de proteção): a salvaguarda de barreira contra os "preguiçosos capitalistas" (donos do "dinheiro envenenado") representada pelo (previsto) anteparo de aldeias. Livre para criticar o Ibama, Raimunda compartilha espaço de discurso com o companheiro João Silva que endossa risco do cenário pós obras da Norte Energia (responsável por Belo Monte): "No dia em que quebrar (a barragem), (o desastre industrial da mineira) Mariana vai perder", ele profetiza.

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Xingu à margem, apesar de tratar de suicídios gerados pelo sistemático desalojamento de famílias produtivas, traz algumas válvulas de escape, como a cena do jogo de damas com o marido, e da presença da indígena Alvina Juruna, exemplo de mulher que "deixou a idade lhe achar, mas a velhice nunca mais". Dependente do trabalho e "suor do rosto", por fim, Raimunda faz valer a alma de quem que quer ser vista como pessoa, nunca como "objeto" ou mesmo vertente de tristeza. Uma pessoa que, tolhida de casa e terra, bota a mão no chão, e canta, embalando lembranças. "Só de estar viva, eu estou feliz", diz. Raro exemplar de pessoa.

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postado em 16/09/2025 04:48
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