Investigação

Decisão de fechamento de clínicas expõe falhas graves em atendimentos

Os proprietários da Comunidade Terapêutica Liberte-se deverão adotar providências para encerrar as atividades, inclusive, a desinternação dos pacientes. Incêndio, mortos e tortura estão entre ocorrências ligadas às unidades

Clínica da Comunidade Liberta-se no Lago Oeste não tinha licença de funcionamento desde agosto de 2024  -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Clínica da Comunidade Liberta-se no Lago Oeste não tinha licença de funcionamento desde agosto de 2024 - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) determinou, ontem, o fechamento imediato das três unidades da Comunidade Terapêutica Liberte-se. No fim de agosto, um incêndio atingiu uma das clínicas do Paranoá. O caso provocou ações de órgãos fiscalizadores, que constataram uma série de irregularidades em outras unidades. Uma delas, no Lago Oeste — que não tinha licença de funcionamento desde agosto de 2024 — foi acusada de maus-tratos, trabalho forçado, agressões físicas e tortura. Três responsáveis do espaço foram presos em flagrante, ontem, por cárcere privado, mas acabaram liberados na audiência de custódia. Procurados pelo Correio, donos da clínica não quiseram se manifestar.

O caso chegou à polícia por meio da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa (CDH/CLDF), que recebeu uma série de denúncias. Na terça-feira, os investigadores da 35ª Delegacia de Polícia (Sobradinho 2) foram ao local e encaminharam 27 internos para prestar depoimento. As versões eram as mesmas: situações de abuso, maus-tratos, cobranças excessivas, falta de atendimento de saúde e até violência sexual. O delegado à frente do caso, Ricardo Viana, chefe da 35ª DP, afirmou que parte dos relatos indicavam que os pacientes não tinham o livre-arbítrio de deixar o local, o que configura "internação involuntária fora dos parâmetros legais."

O presidente da CDH, Fábio Félix (PSol), ressaltou que é necessária uma investigação séria e rigorosa sobre a instituição do Lago Oeste. "Recebemos diversas denúncias de violação de direitos humanos. A situação é grave, por isso tomamos providências com o Ministério Público e a Defensoria Pública", afirmou.

"Nós vamos seguir acompanhando a situação. Primeiro, vamos acompanhar a fiscalização do Estado com relação a estes espaços que não têm as condições adequadas para valorizar a dignidade humana. Vamos acompanhar também o desdobramento dos encaminhamentos para assegurar que todas as pessoas que ali estavam continuem tendo atendimento, mas um atendimento adequado e de acordo com o que prega a legislação brasileira, a partir da reforma psiquiátrica", destacou a deputada Erika Kokay (PT).

A 5ª Promotoria Regional de Defesa de Direitos Difusos (Proreg) e o Núcleo de Direitos Humanos (NDH) do Ministério Público instauraram procedimento para investigar denúncias de graves violações de direitos humanos envolvendo o Liberte-se.

No procedimento, o MPDFT destaca que, "caso sejam confirmadas as alegações, as práticas do Liberte-se configuram uma afronta direta à dignidade da pessoa humana e a todo o arcabouço jurídico de proteção da saúde mental no Brasil". O estabelecimento estaria descumprindo normas federais que regulam o atendimento em saúde mental e comunidades terapêuticas, violando a Lei da Reforma Psiquiátrica, a Portaria GM/MS nº 131/2012 e a Resolução nº 1/2015 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), que define regras para acolhimento em comunidades terapêuticas.

Os promotores determinaram o envio de ofícios à 35ª DP, à Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus), ao Conselho de Política sobre Drogas do DF (Conen) para reunir informações sobre as medidas administrativas, criminais e de fiscalização que foram ou serão adotadas, bem como sobre o plano de assistência aos pacientes que estavam internados nas unidades da Liberte-se. As instituições têm 10 dias para responder.

O TJDFT determinou o encerramento das atividades de todas as clínicas vinculadas à Comunidade Liberte-se. Conforme a decisão judicial, os proprietários deverão adotar providências administrativas, à distância, para implementar tal medida, inclusive, a desinternação dos pacientes. 

Irregularidades

A unidade do Lago Oeste tem capacidade para abrigar até 70 pessoas, entretanto, mais de 100 homens viviam no local. O delegado destacou que alguns internos estavam em situação irregular havia mais de um ano, sem laudo médico ou comunicação ao Ministério Público, como determina a lei. Ele alertou para a possível responsabilização dos familiares que entregaram os dependentes à clínica. "Muitos desses internos foram retirados de casa contra a vontade e levados a um local que não atendia aos requisitos legais. Ao consentirem com essa prática, as famílias acabam contribuindo para um (eventual) crime", ressaltou.

"Os dependentes químicos podem permanecer em comunidades terapêuticas por, no máximo 90 dias, e lá tinham pessoas há mais de um ano. Além de idosos e jovens. Então, são infinitas irregularidades ignoradas por esses familiares", disse o delegado.

No rol de denúncias estão a violência psicológica para caso os internos não seguissem as ordens. Apesar de prometer visitas regulares a cada 30 dias, alguns dos pacientes relataram que não possuem contato com a família há meses.

A precariedade da alimentação também foi denunciada. Nos vídeos feitos pela comissão é possível ver uma mesa, em cujos pratos continham apenas arroz e batata doce cozida. Ao fundo, um dos internos comenta que não era oferecido carne. "É arroz, arroz e arroz", diz.

Os internos também relataram que a alimentação era precária
Os internos também relataram que a alimentação era precária (foto: Material cedido ao Correio)

Punição

Três responsáveis pela unidade do Lago Oeste, além de um coordenador, foram presos e autuados em flagrante pelo crime de cárcere privado. Eles passaram por audiência de custódia ontem e receberam a liberdade provisória.

Em nota oficial, a Secretaria DF Legal informou que a ouvidoria recebeu denúncia contra a unidade, em junho de 2024, feita pela proprietária de um lote próximo à clínica, solicitando a verificação do alvará de funcionamento para exercer a atividade. À época, o setor de Fiscalização de Atividades Econômicas vistoriou o instituto e constatou que a clínica encontrava-se sem licença de funcionamento. 

Na tarde de ontem, os fiscais retornaram ao local e verificaram que o estabelecimento continuava a exercer atividade econômica com pendências no licenciamento. Por isso, foi aplicada uma multa de R$ 10.858. No momento da vistoria, havia duas pessoas que se apresentaram como responsáveis.

A Secretaria de Saúde (SES-DF), por sua vez, esclareceu que oferece a assistência necessária, por meio de um mutirão destinado a avaliar as condições de saúde física e mental dos envolvidos. Os pacientes foram encaminhados para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a fim de dar início aos tratamentos voltados à dependência química. 

Serviços

Em nota, a SES destacou que a rede de saúde mental do DF é estruturada para garantir cuidado integral, com atendimentos que vão desde as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) até serviços especializados, como os 18 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em funcionamento no território. Sete deles são voltados ao atendimento de pessoas com transtorno decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, com equipe multiprofissional especializada para o tratamento, distribuídos entre diferentes modalidades, conforme o perfil populacional, a faixa etária atendida e a complexidade do cuidado requerido. Entre janeiro e junho de 2025, esses centros promoveram mais de 199 mil atendimentos. Em casos de crise aguda, o acesso deve ser feito pelas emergências do SUS ou pelo Samu 192, que conta com equipe especializada em saúde mental.

A pasta também informou que há 39 comunidades terapêuticas particulares cadastradas, das quais 31 já foram vistoriadas, resultando em quatro autuações e uma interdição. "A Secretaria de Saúde não regula preços e não dispõe de levantamento sobre valores praticados pelas clínicas particulares. A estrutura mínima de pessoal para atendimento a pessoas com transtornos por uso de substâncias deve atender aos parâmetros estabelecidos na RDC nº 29/2011 e na Lei nº 11.343/2006", destacou.

 17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF -  Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Raiane Almeida Teixeira esta com o pai internado na clínica.
17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Raiane Almeida Teixeira esta com o pai internado na clínica. (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Familiares

A notícia sobre a situação da clínica Liberte-se do Lago Oeste, onde o pai, de 65 anos, está internado, foi recebida com desespero por Raiane Almeida Teixeira, 40, que acompanha de perto o tratamento iniciado há quatro meses. "Foi péssimo. Eu estava vendo melhoras nele, no raciocínio, na alegria. Então, quando recebemos essa notícia, fiquei arrasada", disse.

Apesar do que foi encontrado e relatado no local por outros internos, Raiane destacou que, em sua experiência, o pai nunca relatou maus-tratos ou coerção dentro da clínica. "Ele sempre falou comigo com liberdade. Se tivesse acontecido algo, eu sei que ele teria contado", completou. O pai de Raiane seguia na clínica mesmo após a denúncia. "Ele vai seguir aqui. Caso fechem a clínica, eu procuro outro lugar para ele", ressaltou.

Um outro familiar de um interno, que não quis se identificar, afirmou que nunca teve problemas com a clínica. "Ele nunca me relatou nada", explicou. "Perguntaram quem queria ir embora, e ele foi. Vou buscá-lo (na delegacia). Ele não tem onde ficar e só a gente sabe o que passamos com familiares dependentes químicos", disse.

Vizinhos próximos à clínica relatam que desde sua instalação no Lago Oeste tiveram problemas. "Já pularam o muro e invadiram minha casa diversas vezes. No início mandavam bilhetinhos pedindo ajuda, depois eles só entravam aqui para usar a piscina", contou uma moradora.

 Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá.
Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá. (foto: Ed Alves/CB/D.A Press)

Tragédia

Em 31 de agosto, cinco pessoas morreram após um incêndio atingir a clínica Liberte-se localizada no Paranoá. As vítimas foram identificadas como Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos. O fogo teve início por volta das 3h da manhã. A operação realizada pelo Corpo de Bombeiros (CBMDF), contou com a atuação de 10 viaturas. Ao chegar à clínica, militares se depararam com uma grande quantidade de fumaça densa saindo do interior da clínica. Além disso, altas chamas saiam pelo telhado. 

 

Incêndio

Em 31 de agosto, cinco pessoas morreram após um incêndio atingir a clínica Liberte-se localizada no Paranoá. As vítimas foram identificadas como Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos. O fogo teve início por volta das 3h da manhã. A operação realizada pelo Corpo de Bombeiros (CBMDF), contou com a atuação de 10 viaturas. Ao chegar à clínica, militares se depararam com uma grande quantidade de fumaça densa saindo do interior da clínica. Além disso, altas chamas saiam pelo telhado.

  •  17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF -  Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Raiane Almeida Teixeira esta com o pai internado na clínica.
    17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Raiane Almeida Teixeira esta com o pai internado na clínica. Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  •  17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF -  Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Delegado  da 35 DP Sobradinho ll Ricardo Viana ,
    17/08/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Clinica de recuperação Instituto Liberta-se no Lago Oeste pode sofrer interdição do DF Legal. Delegado da 35 DP Sobradinho ll Ricardo Viana , Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • Fiação exposta foi alvo de denúncia da Câmara Legislativa
    Fiação exposta foi alvo de denúncia da Câmara Legislativa Foto: Material cedido ao Correio
  • Os internos também relataram que a alimentação era precária
    Os internos também relataram que a alimentação era precária Foto: Material cedido ao Correio
  •  Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá.
    Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá. Foto: Ed Alves/CB/D.A Press
  •  Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá.
    Incêndio em casa de recuperação de dependentes químicos deixa cinco mortos. O incêndio começou perto das 3h da manhã na área rural do Boqueirão, região do Paranoá. Foto: Ed Alves/CB/D.A Press
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postado em 18/09/2025 06:07 / atualizado em 18/09/2025 10:42
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