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Polícia prende 4 por incêndio em clínica no Paranoá

Acusados responsáveis pela unidade no Paranoá, onde morreram cinco pessoas e outras 11 ficaram feridas, foram ouvidos pelo delegado Bruno Carvalho. A outra unidade, na mesma região administrativa e que foi fechada pela Justiça, continua funcionando

Internos estavam trancados quando o fogo começou na Liberte-se -  (crédito: Luiz Fellipe/CB/D.A Press)
Internos estavam trancados quando o fogo começou na Liberte-se - (crédito: Luiz Fellipe/CB/D.A Press)

Em novo desdobramento da investigação da Comunidade Terapêutica Liberte-se, a polícia prendeu, ontem, os donos da clínica, um coordenador e um monitor da unidade do Paranoá. Eles são investigados por homicídio doloso, cárcere privado e prescrição de medicamentos sem autorização. Em 31 de agosto, um incêndio na clínica matou cinco pessoas e feriu outras 11. 

Durante a investigação, foram encontrados itens como medicações, esteroides e dois simulacros de arma de fogo. Segundo Bruno Carvalho, delegado-chefe da 6° Delegacia de Polícia, no Paranoá, ainda não se sabe se os simulacros eram usados para ameaças aos internos. “Iremos colher mais depoimentos para esclarecer a existência desses itens na clínica”, afirmou. Não foram encontrados documentos que provem a regularidade da clínica.

“Eles afirmaram que tinham pedido o alvará, mas ainda estava em tramitação. Então, eles funcionavam sem alvará", ressaltou Carvalho. O delegado ainda afirmou que sete das 11 vítimas que sobreviveram prestaram depoimento. Restando quatro, que permanecem internadas em estado grave. Sobre onde estão os demais internos, ele afirmou que alguns voltaram para a família e outros ainda estão na clínica. 

Segundo o advogado Klebes Rezende da Cunha, que representa Matheus Luiz Nunes, monitor que atuava na clínica do Paranoá e foi preso ontem, seu cliente fazia trabalhos voluntários e era interno da clínica. No dia do incêndio, ele estaria no quarto consumido pelo fogo. "Ele relatou que acordou com o cheiro da fumaça e com gritos. Ao se levantar, tropeçou no corpo de um colega que já estava sem vida no chão", afirmou.

Sobre o trabalho voluntário, o advogado acrescentou que "não existia salário, era uma troca de favores, na qual ele trabalhava para continuar na clínica", acrescentou. Matheus Luiz foi preso na clínica. Para Cunha, isso representa a fragilidade com que seu cliente foi encontrado. "Mesmo depois do incêndio, ele continuou na clínica. Ele não tem para onde ir", disse. A reportagem tentou contato com os demais acusados, mas não obteve retorno até o fechamento da edição. 

O Correio visitou, ontem à noite, as duas clínicas do Liberte-se localizadas no Paranoá. A unidade onde ocorreu o incêndio estava fechada. Na outra, cujo fechamento imediato havia sido determinado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) na terça, estava em funcionamento. Um funcionário, que não quis se identificar, informou que tinham cerca de dez internos vivendo no espaço. 

 17/09/2025 - Ed Alves CB/DA Press. Cidades. Polícia Civil faz vistoria no Instituto Liberte-se, no Lago Oeste.
Cartaz no portão da clínica no Lago Oeste avisa a interdição (foto: Ed Alves CB/DA Press)

Lago Oeste

Denúncias coletadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa (CLDF) e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), obtidas pelo Correio, revelaram como era a rotina de maus-tratos vivenciada pelos internos em outra unidade, no Lago Oeste. O local também não tinha licença de funcionamento desde agosto de 2024, quando a clínica foi acusada de maus-tratos, trabalho forçado, agressões físicas e tortura. Três responsáveis do espaço foram presos em flagrante, na última terça-feira, por cárcere privado, mas acabaram liberados na audiência de custódia.

O trio, que não precisará pagar fiança, vai precisar usar tornozeleira eletrônica por 90 dias e cumprir as seguintes medidas: manter o endereço atualizado perante o Juízo que o processará; comparecer a todos os atos do processo; não se ausentar do DF por mais de 30 dias, não frequentar o local dos fatos nem ter contato com os funcionários do instituto; encerrar imediatamente as atividades da comunidade; e não de exercer atividade terapêutica semelhante em estabelecimentos similares. 

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Nessa unidade, os extintores de incêndio foram instalados somente depois da tragédia ocorrida no Paranoá, segundo o relato de internos durante uma inspeção na última terça-feira. No galpão onde ocorriam as reuniões e os "momentos de louvor", uma mensagem em destaque chamou atenção da equipe responsável pela inspeção: "Verdadeiramente livres". "Tratamento, a gente precisa, mas nessas condições, com 50 pessoas em um quarto? Isso não é certo. Aqui, ninguém pode sair. E se a minha família exigir minha saída, vai precisar pagar 30% de todos os meses do contrato", contou um paciente que está há três meses internado.

As mensalidades custavam no mínimo R$ 1.600 para um contrato de seis meses, mas as consultas com psicólogos eram raras — uma quando o interno chegava ao espaço e outra quando saía. Para atendimento com psiquiatras, o custo era de R$ 300. "Eu tentei fugir há uns 15 dias, mas eles me enforcaram, chutaram e doparam. Passei sete dias seguidos sendo medicado", contou o mesmo paciente.

Outro interno relatou que se alguma regra fosse descumprida, como a obrigação de exercer os trabalhos definidos pela clínica, eram ameaçados a passar meses sem ter qualquer contato com seus familiares. "Os fios dos banheiros estavam todos expostos. Se pega fogo aqui também, a gente não teria para onde correr, porque é tudo trancado de noite", denunciou um dos internos. 

Sessões de tortura

Em relatório, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontou ter encontrado "grande quantidade de medicações psicotrópicas de uso controlado, desacompanhadas de receita médica e sem a presença de profissionais de saúde". Segundo o documento, houve várias denúncias de aplicação de injeções de sedativos por monitores nos internos. "Dentro da sala em que estavam armazenadas as medicações, havia a beliche de um dos monitores, onde encontramos um facão escondido", segundo o relatório do MNCPT.

Alguns internos relataram ter sofrido sessões de tortura, no qual pessoas eram amarradas, espancadas e enforcadas. De acordo com o relatório, dentre os homens, havia uma mulher transexual, cuja identidade de gênero era desrespeitada. "Ela denunciou que chegou a ser fisicamente agredida no estabelecimento", apontou o documento. "Temos (MNCPT) demonstrado em nossas inspeções que as Comunidades Terapêuticas têm atuação que contraria a Lei da Reforma Psiquiátrica, com rotinas violentas que exploram pessoas com demandas associadas ao uso de drogas e aprofundam sua marginalização social", finalizou.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa, Fábio Félix (PSol), definiu como "devastador" o cenário encontrado na clínica. "Não podemos aceitar que, em nome do tratamento contra o abuso de drogas, pessoas sejam submetidas a condições degradantes e a tratamentos ineficazes. Esse grave problema social não se enfrenta com violência e abandono, mas com políticas públicas sérias de saúde mental, acolhimento e respeito. (...) Que essa denúncia seja um alerta sobre a necessidade de fiscalização de outras comunidades terapêuticas”.

Vizinha e moradora da Rua 18, Lago Oeste, Elizabeth Germano de Araújo, 45 anos, contou viver há oito na região onde está localizada a clínica. Ela relatou nunca ter tido contato direto com os internos, mas já presenciou situações em que pacientes tentavam escapar. “Eram muitos homens nessa clínica e eles sempre pulavam o portão tentando fugir. Mas a segurança os pegava de volta”, afirmou.

O que diz o GDF

A Secretaria DF Legal é um dos órgãos responsáveis pela fiscalização das clínicas, como verificar licenciamentos e alvarás. Questionada sobre quantas entidades desse segmento foram fiscalizadas em 2023, 2024 e este ano; sobre quais foram as principais irregularidades, se houve interdição e quantas unidades e se continuam fechadas ou voltaram a funcionar, a DF Legal respondeu que “não separa a fiscalização por tipo de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), sendo possível saber apenas quantos estabelecimentos comerciais no geral foram interditados”.

Sobre as clínicas, investigadas pela Polícia Civil, informou que havia duas no Paranoá. A que pegou fogo estava com a licença da Vigilância Sanitária vencida. A fiscalização foi logo após o incêndio. A outra, na chácara vizinha, não possuía licenciamento e foi interditada. No entanto, o Correio flagrou e conversou com um paciente que informou terem ao menos nove internos vivendo no local. No Lago Oeste, a única pendência era a falta de licença da Secretaria de Agricultura para a produção de ovos no local. Ano passado, foi multada em R$ 10 mil. 

À Secretaria de Saúde, foram questionados quantos internos viviam em cada unidade do Liberte-se; quantos receberam atendimento pela pasta; para onde foram; onde estão alojadas; e quais os próximos passos no acolhimento em saúde a esse público. Em reposta, a SES informou que 30 internos da clínica receberam atendimento e orientações sobre a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), a fim de iniciar os tratamentos voltados à dependência química.

Do total, três pacientes encontram-se em tratamento intensivo em leitos de CAPS, onde devem permanecer pelos próximos 14 dias. "A SES reforça que todas as equipes da rede de saúde mental estão mobilizadas para garantir assistência integral a esses pacientes. Os serviços permanecem de portas abertas, sem prazo definido para a finalização dos atendimentos, assegurando o acesso ao acompanhamento multiprofissional, atendimento psiquiátrico, uso de medicação quando necessário e todas as atividades ofertadas pelos CAPS", informou a nota.

A Secretaria de Segurança Pública informou ter recebido a demanda da reportagem, “mas como o nosso horário de atendimento é das 08h às 18h, seu pedido será apurado, no menor tempo possível, a partir da próxima manhã”. O e-mail com as perguntas foi enviado à pasta às 17h20.

Linha do tempo

» 31 de agosto (à noite): uma das duas unidades da Comunidade Terapêutica Liberte-se, no Paranoá, pega fogo, deixando cinco mortos e 11 feridos;

 » 16 de setembro: responsáveis pela unidade no Lago Oeste são presos;

 » 17 de setembro: após audiência de custódia, responsáveis pela Liberte-se no Lago Oeste são liberados. Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) manda fechar todas as unidades da Comunidade Terapêutica Liberte-se;

 » 18 de setembro: responsáveis pela unidade no Paranoá são presos.

Palavra de especialista

Senzala travestida de clínica

Durante a inspeção à filial da Liberte-se, encontramos relatos de internos e indícios de inúmeros possíveis crimes, como cárcere privado, trabalho forçado, retenção de documentos e benefícios. Do ponto de vista do direito à saúde, não havia qualquer sinal de projeto terapêutico singular, nem presença de qualquer profissional da saúde, fosse médico, psicóloga, enfermeira, técnico de enfermagem.

Então, a nossa delegação de fiscalização tem rogado aos órgãos de Justiça atenção para uma espécie de rede de chácaras de horror se passando por casas de reabilitação, clínicas de recuperação... os nomes são diversos.

É preciso que esses achados ecoem na Justiça da Saúde no Distrito Federal. A Câmara Legislativa, por meio da Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e de sua Comissão de Direitos Humanos tem provocado o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) a extrair as consequências deste possível estado ilegal de coisas.

Coordenadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), várias instituições tem participado de nossas inspeções: Conselho Regional de Psicologia, Conselho Regional de Serviço Social, Observatório de Saúde Mental e o grupo Saúde Mental e Militância, ambos da UnB, além de mandatos parlamentares distritais e federais. Nossos relatórios estão disponíveis no site do MNPCT.

Essa não é a primeira vez que nosso grupo encontra indícios de tortura e trabalho análogo à escravidão em diligências como essa. Então, elevamos nossas expectativas por uma inflexão por parte da Justiça do DF na postura em relação a essas organizações.

A luta antimanicomial do DF vai seguir cada vez mais firme e articulada com instituições competentes, até que não reste nenhum manicômio e nenhuma nenhuma senzala travestida de clínica no nosso território.

Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais!

*Thessa Guimarães é psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia/DF e participante da delegação interinstitucional de fiscalização da saúde mental no DF

 

  • Cartaz no portão da clínica no Lago Oeste avisa a interdição
    Cartaz no portão da clínica no Lago Oeste avisa a interdição Foto: Ed Alves CB/DA Press
  •  Incendio da Clinica
    Incendio da Clinica Foto: Luiz Fellipe/CB/D.A Press
  •  Incendio da Clinica.  Delegado Bruno Cunha da  6 DP
    Incendio da Clinica. Delegado Bruno Cunha da 6 DP Foto: Luiz Fellipe/CB/D.A Press
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DC
postado em 19/09/2025 04:06 / atualizado em 19/09/2025 11:38
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