
Pouco depois do almoço, 12h30, uma mulher abre o portão de uma vizinha em desespero, na Quadra 8 do Setor Oeste da Estrutural. Com a voz embargada, dá a notícia: “Mataram a Rafaela. O Corpo de Bombeiros está lá.” O informe correu pela rua e, em minutos, moradores surgiram à porta da casa de muro verde e um único andar. Rafaela Marinho, 7 anos, era descrita pela família como uma menina extrovertida e amorosa. Não morava ali. Estava na casa do pai desde a segunda-feira e ficaria até o fim das aulas, em 10 de dezembro. Depois, seguiria para Goiás, onde reside a mãe.
O plano parecia intacto até o começo da tarde. Nada anunciava o que ainda estava por vir. Iraci Bezerra dos Santos Cruz, 43, assassina confessa de Rafaela, contou à polícia, como quem descreve um gesto habitual, os detalhes do crime. Em 10 minutos de fala, negou premeditação, atribuiu a motivação fútil ao ciúme, uso de drogas e consumo de bebida alcoólica e cravou. “Vontade repentina”. Ela está presa e foi indiciada por feminicídio.
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Rafaela cursava o 2º ano na Escola Classe 1 da Estrutural. Os pais são separados e a mãe, a dona de casa Fabiana Marinho, 36, decidiu mudar-se para Goiás já ao término do ano letivo. Por isso, o acordo seria que a criança permanecesse na casa do pai até o fim das aulas — com exceção dos finais de semana, quando a mãe a buscaria.
Em Brasília, o 20 de Novembro é feriado pelo Dia da Consciência Negra. Sem aulas, Fabiana conversou com a filha ainda na quarta-feira e combinou de buscá-la na quinta. “Falei para ela que não tinha o dinheiro da passagem, mas que sexta-feira eu iria, sem falta. Ela até perguntou de novo: ‘A senhora vem mesmo, né’. E eu respondi que sim. Olha como eu vim buscar minha filha”, desabafou, em prantos. Essa foi a última conversa entre mãe e filha.
O crime
Logo no começo da tarde de sexta-feira (21/11), uma amiga ligou para Fabiana e contou o ocorrido: disse que Iraci havia matado a menina e se apresentado voluntariamente na 8ª Delegacia de Polícia (Estrutural). Ivanei Matos, 48, pai de Rafaela, enviou uma mensagem à ex: “Desce para a Estrutural. Me perdoa.”
Ontem, no dia do assassinato, Ivanei saiu às 7h de casa para trabalhar. Ele é mestre de obras e prestava um serviço no Lago Sul. Do trabalho, recebeu a trágica notícia por uma ligação da polícia. “Nós somos separados. Eu tenho um companheiro, ele também, mas sempre pedi que ele tivesse cuidado com os relacionamentos. Pedi tanto para cuidar da minha filha”, desabafou a mãe de Rafaela.
Na 8ª DP, Iraci começou o depoimento dizendo: “É. Agora vou pagar pelo o que fiz.” A mulher relatou que, no dia anterior, usou drogas e álcool na companhia do namorado. Segundo ela, o consumo de ilícitos perdurou até às 5h de ontem. Às 7h, o pai de Rafaela saiu para trabalhar. Ao ser questionada sobre ter discutido com a menina antes do crime, ela afirmou que a criança disse que preferia morar com a vizinha do que com ela.
“Não estava planejando, nem pensando”, respondeu Iraci à delegada ao ser confrontada sobre a possível premeditação do crime. Acrescentou que teve uma “vontade repentina” e detalhou o passo a passo: primeiro, tentou dopar a menina usando um pano com álcool no nariz dela; depois, a asfixiou com um cinto e tentou pendurá-la em uma pilastra. “Vesti uma roupa e vim na delegacia”, finalizou.
No fim do interrogatório, abaixou a cabeça, passou a língua entre os lábios e proferiu: “Só para dizer que estou arrependida mesmo.”
Justiça
Após mais de quatro horas de perícia na casa, as equipes do Instituto de Medicina Legal (IML) recolheram o corpo. Antes, chamaram a mãe. A mulher retornou à rua em prantos e amparada por amigos e familiares. Sentada em uma cadeira de plástico branca numa calçada, pediu por Justiça. “O que vai ser de mim agora, meu Deus. Minha filha era tão amorosa. Amava ficar com o irmãozinho recém-nascido.”
Segundo Fabiana, a filha Rafaela não relatava maus-tratos por parte da madrasta. Disse apenas uma vez que Fernanda estaria tentando matar o companheiro envenenado. Apesar disso, a menina não tinha vontade em ficar na casa do pai.
Revoltados, dezenas de moradores — muitos sequer conheciam Rafaela — ecoaram gritos de fúria. Pediram por Justiça e, impulsionados pela raiva, chutaram o portão da casa de Iraci. Sem condições, a família criou uma vaquinha, via PIX, para arcar com os custos do enterro. A data e horário do sepultamento ainda não foram acertados.
Foragida
A Polícia do DF descobriu que Iraci era foragida da Justiça do Estado Pará por matar o então marido com quem conviveu por mais de 23 anos e teve quatro filhos — deixados por ela no estado nordestino na fuga para Brasília. O mandado de prisão, expedido em março de 2024, consta no Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP) do Conselho Nacional de Justiça.
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Ela negou o crime. Contou que, no dia do fato, havia saído com o companheiro para beber em um bar da região. Na volta, segundo a própria versão, ele entrou para tomar banho enquanto ela permaneceu na área externa da casa. “Ouvi uns disparos de arma e fiquei assustada, né? Corri para o mato para se esconder”, alegou. A Justiça paraense não comprou a tese. A polícia concluiu a autoria dela, e o Ministério Público pediu a prisão preventiva. O juiz concordou, determinando a captura e a transferência imediata para o Centro de Reeducação Feminino de Santarém (PA).
Depois do assassinato do marido, ela fugiu para Brasília de ônibus. Fez uma parada em Goiás e seguiu para a capital federal. Há um ano, conheceu o pai de Rafaela e, aos poucos, ocupou espaço e se apossou da casa, ditando regras. “Ela era chata, brigava com as crianças na rua e chamava a polícia para qualquer coisa”, disse uma criança moradora da Estrutural.
Ontem, Iraci foi transferida ao Complexo da Polícia Civil, onde passará por audiência de custódia neste sábado (21/11). Segundo a delegada Bruna Eiras, chefe da 8ª DP, a acusada responderá por feminicídio, com incidência da Lei Henry Boral, com agravantes de meio cruel por impossibilitar a defesa da vítima e por motivo fútil. “Ainda terá agravante de pena pelo crime ser praticado contra menor de 14 anos e por ter relação e madrasta com a vítima. A pena pode chegar a 40 anos”, finalizou.
Saiba Mais
Indiciamento
Segundo a delegada Bruna Eiras, chefe da 8ª DP, Iraci Bezerra vai responder por feminicídio, com incidência da Lei Henry Borel, com agravantes de meio cruel por impossibilitar a defesa da vítima e por motivo fútil. Há, ainda, agravante de pena pelo crime ser praticado contra menor de 14 anos e por ter relação de madrasta com a vítima. A pena pode chegar a 40 anos.
