SEGURANÇA

Sob ameaça, a distância: estupro virtual atrai predadores e faz reféns

O crime ainda não é tipificado. Não há estatísticas. No entanto, a Polícia Civil vem investigando esse tipo de ocorrência desde 2017 e afirma que criminosos "podem ser qualquer um e estão por todo canto, infiltrados nas redes"

Constrangimento, ameaça e continuidade. A tríade estrutura um dos crimes mais graves do ordenamento jurídico: o estupro. Enquadrada nos artigos 213 e 217-A do Código Penal, a prática deixou de se restringir ao espaço físico. Ganhou ramificações e encontrou na internet um terreno fértil para criminosos. Ao mesmo tempo, imbróglio para a polícia. 

Esta semana, mais um caso veio à tona. A Polícia Civil do DF prendeu em Brasília um homem acusado de usar as redes sociais e jogos on-line para ameaçar crianças e exigir delas conteúdos sexuais. Com perfil falso, Miguel Armando Bernardo Silva Filho entrou no Instagram, no TikTok e em jogos on-line para atrair um público específico: crianças. De conversa em conversa, pedia e conseguia fotos e vídeos de cunho sexual das vítimas. De acordo com o delegado-chefe da 27ª DP, Alexandre Godinho, Miguel usava do material recebido para um esquema de chantagem sexual.

O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) denunciou o homem em junho, e a Justiça expediu o mandado de prisão. Ele permaneceu foragido, mas foi capturado na segunda-feira. A PCDF identificou pelo menos outras duas vítimas — as meninas têm 12 anos e moram no Maranhão —, além da que deu origem ao processo no DF.

Muitas ocorrências dessa natureza chegam às delegacias da capital. A Justiça entende que o estupro não exige contato físico entre autor e vítima. "Quando os tipos penais foram construídos, era para ser pessoalmente (vítima e autor), mas, com o advento da internet, pela rede de computadores, a vítima era obrigada a praticar ato sexual a fim de satisfazer o criminoso", afirma Karina Duarte, delegada-adjunta da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam 1).

Ele recorda uma situação em que uma mulher, mãe de dois filhos, tornou-se alvo do próprio ex-marido no Distrito Federal. Separados, o homem detinha a guarda de uma das crianças e só autorizava que a ex buscasse o filho caso ela gravasse vídeos e enviasse fotos de cunho sexual. A vítima cedeu por algum tempo antes de procurar a polícia. A história não é recente, mas foi uma das mais sensíveis investigadas por Karina.

Diferentemente da extorsão, que busca a vantagem econômica indevida, o estupro virtual age sob a constância da ameaça. Ao encaminhar material íntimo, a vítima torna-se refém. O autor exige a repetição dos envios. "Há casos em que o autor exige que a vítima se automutile. Ameaça publicar as imagens e filmagens nas redes ou até contar para os pais", relata a delegada, classificando os episódios como "trágicos".

Em outubro, por exemplo, a 2ª Vara Criminal de Águas Claras condenou um homem a cinco anos e meio de prisão, em regime aberto, pelos crimes de tentativa de estupro virtual e fraude processual. Ele criou perfil falso em redes sociais para chantagear uma adolescente com vídeo de conteúdo íntimo.

Primeiros casos

O primeiro caso de estupro virtual registrado no Brasil ocorreu em 2017, em Teresina (PI). O delegado Luiz de Moura Correia investigava um técnico de informática que usava um perfil fake no Facebook para exigir de uma mulher vídeos e fotos de cunho sexual. O homem foi preso. 

A capital do Piauí e o estado de Minas Gerais foram pioneiros na notificação de estupro virtual no país. Em território mineiro, um rapaz de 19 anos constrangeu e ameaçou cinco mulheres por meio de uma conta falsa nas redes sociais. Depois de convencê-las a enviar conteúdo pornográfico, passou a chantageá-las sob a ameaça de divulgar o material.

No DF, também em 2017, a primeira investigação do tipo envolveu um estudante de psicologia, morador de Natal (RN), que cometeu estupro virtual contra três mulheres e duas adolescentes brasilienses. Preso, debochou: "Vocês demoraram, hein?". A chacota deixou à mostra que o acusado estava em cena havia tempos. A fala revelou, sobretudo, as dificuldades da investigação policial.

No Congresso Nacional, tramitam propostas para tipificar o crime.

Desafios

Em uma das apurações da Polícia Civil (PCDF), uma adolescente afirmou que preferiria morrer a ter que contar aos pais. A vergonha é um dos entraves para a descoberta do crime. Quando se trata de menores, a mudança de comportamento costuma ser percebida por familiares. Sob pressão, muitos desabafam a situação a terceiros, o que faz a informação chegar aos responsáveis.

Entre mulheres adultas, a ida à delegacia é frequentemente atravessada por culpa, medo e retraimento. Muitas tentam lidar sozinhas com a situação: bloqueiam os criminosos, excluem as redes sociais ou continuam a enviar vídeos e fotos. "A população precisa saber que está protegida perante a lei. Há uma rede de proteção e combate a esse tipo de crime", alerta a delegada.

A chacota do estudante de psicologia expôs a demora em capturá-lo. O trâmite aparentemente lento, no entanto, decorre da alta complexidade das investigações. São obstáculos que incluem o acesso limitado aos dados fornecidos pelos provedores de conexão.

Hanna Gomes, advogada e especialista em direito penal, aponta outro entrave: a exigência de prova do "ato libidinoso". Segundo ela, a maioria das condutas ocorre sem deixar vestígios, o que dificulta uma investigação. "O desafio é convencer as autoridades de que o comando, mesmo a distância, se deu sob grave ameaça. É preciso provar que a ameaça era grave o suficiente para anular a vontade da vítima." Ela ressalta ainda a complexidade do ambiente digital. "O IP do dispositivo eletrônico pode ser rastreado, mas o agressor pode usar técnicas de anonimização. Além disso, a identificação de um usuário na plataforma exige ordem judicial para que o provedor forneça os dados associados à conta. Se o provedor for estrangeiro, volta-se ao desafio da cooperação internacional."

Trauma

Por estar enquadrado nos artigos 213 e 217-A do Código Penal, o estupro virtual não aparece de forma discriminada nas estatísticas. Os números costumam integrar os dados gerais de estupro e estupro de vulnerável. Em 2023, o quantitativo foi de 986. Em 2024, 882, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025.

A delegada Karina enfatiza que há um número considerável de estupros virtuais na capital. Traçar um perfil do criminoso também não é possível, afirma. "Eles podem ser qualquer um e estão por todo canto, infiltrados nas redes", alerta. A investigadora orienta aos pais e responsáveis quanto à supervisão ao filho e a notar qualquer comportamento atípico.

Para além do registro da ocorrência e trabalho policial, permanecem as sequelas. O porquê crianças e adolescentes tendem a ser alvos fáceis pode ser explicado pela imaturidade emocional e cognitiva, alerta Kênia Ramos, psicóloga do grupo Mantevida. Nessa fase, o cérebro ainda está em formação, especialmente em áreas responsáveis por análise de risco, tomada de decisão e controle de risco, explica a profissional.

É dessa vulnerabilidade que se aproveitam os agressores. O impacto é tão grande quanto o estupro com contato físico. Cada faixa etária reage de maneira distinta. As crianças não compreendem totalmente o que aconteceu, mas sentem que algo está errado. Sentem culpa e vergonha. Em muitos casos há um retrocesso comportamental como a enurese, irritabilidade, pesadelos e dificuldades escolares", detalha.

Em adolescentes, explica, há o sentimento de culpa, mesmo na posição de vítima. Se isolam socialmente, com medo de julgamento de amigos e familiares e costumam apresentar sintomas depressivos, ficam ansiosos, têm crises de pânico, irritabilidade e desmotivação.

"Em mulheres adultas, elas desenvolvem traumas psicológicos mais complexos, com a sensação de invasão, perda de controle e violação de intimidade", finaliza.

Palavra de especialista

Educação digital é urgente

Por Adilson Valentim, advogado especialista em direito penal e criminologia pela PUC-RS

Desde a alteração do Código Penal pela Lei nº 12.015/2009, o crime de estupro passou a incluir não apenas a conjunção carnal, mas também qualquer ato libidinoso imposto por violência ou grave ameaça. Essa mudança abriu espaço para o reconhecimento de uma modalidade que vem chamando cada vez mais a atenção das autoridades: o estupro virtual.

Diferentemente da ideia tradicional do crime, essa forma de violência não exige contato físico entre agressor e vítima. Ela ocorre pela internet, principalmente por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e outras plataformas digitais. Nesses casos, o agressor usa grave ameaça — e não força física — para obrigar a vítima a realizar atos de cunho sexual diante da câmera ou para enviar imagens íntimas.

O Poder Judiciário brasileiro tem reconhecido que até mesmo a chamada contemplação lasciva — quando a vítima é coagida a se exibir sexualmente — constitui ato libidinoso suficiente para caracterizar o estupro, previsto nos artigos 213 e 217-A do Código Penal. Em decisões recentes, tribunais afirmam que a falta de contato físico não impede a consumação do crime.

Embora ainda seja uma novidade no debate jurídico nacional, o fenômeno já é mais conhecido em outros países. Nos Estados Unidos, ele é chamado de sextortion (sextorsão) e há anos preocupa autoridades e especialistas em segurança digital.

O avanço desse tipo de crime reforça a urgência de medidas de educação digital e conscientização pública. Entender que o estupro virtual é uma forma real e grave de violência sexual é essencial para estimular denúncias, fortalecer políticas de proteção e preparar famílias, escolas e instituições para lidar com o problema.

Onde denunciar

» Disque 197 (Polícia Civil)

» Delegacia Eletrônica (pcdf.df.gov.br/servicos/delegacia-eletronica)

» Delegacias circunscricionais — veja os endereços e contatos também no site da PCDF: pcdf.df.gov.br/unidades-policiais/policia-circunscricional 

 

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