
A intensidade do calor em 2023 atingiu as ondas do mar de tal maneira que cientistas advertem sobre o prenúncio de um ponto de inflexão. As descobertas fornecem insights sobre os fatores regionais que impulsionam esses eventos, associando a mudanças mais amplas no sistema climático do planeta. O fenômeno é chamado de ondas marinhas de claro (MHWs), marcado por episódios intensos e prolongados de temperaturas oceânicas excessivamente elevadas, que interferem no ecosistema. No esforço de compreender o que ocorre, cientistas liderados por Tianyun Dong, do Instituto de Tecnologia Oriental/Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China em parceria com o Instituto Scripps de Oceanografia e a Universidade da Califórnia, San Diego, conduziu uma análise global usando observações combinadas de satélite e dados de reanálise oceânica, incluindo aqueles do projeto de alta resolução ECCO2 (Estimating the Circulation and Climate of the Ocean-Phase II). O artigo sobre o estudo foi publicado na revista científica Science.
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Janaina Bumbeer, gerente de Projetos na Fundação Grupo Boticário e doutora em Ecologia e Conservação com foco em ambientes marinhos, disse que a grande preocupação é que a cada ano aumenta essa intensidade e, portanto, as consequências. "Esse aumento de temperatura tem impactado no mar e nos seres humanos. No Brasil, são mais de 100 registros por ano", afirmou. O fenômeno gera, por exemplo, o branqueamento generalizado de corais e mortalidade em massa.
"Em 2024, vivemos o maior evento de branqueamento de corais da história, e o Brasil foi duramente atingido. O que vimos nos recifes do Nordeste foi chocante: áreas inteiras, como a Costa dos Corais, estavam completamente brancas, como se tivessem sido apagadas. Mas o que mais nos marcou, como WWF-Brasil, foi o que encontramos em alto-mar: recifes profundos, nos montes submarinos da Cadeia de Fernando de Noronha e Cadeia Norte Brasileira, também estavam branqueando — algo que nunca havíamos registrado antes", ressaltou Marina Correa, analista de Conservação e líder de Oceanos no WWF-Brasil.
Prejuízos generalizados
As mudanças climáticas acentuadas pela ação humana causam um rápido aumento na frequência e intensidade das MHWs. Em 2023, regiões em todo o mundo, incluindo o Atlântico Norte, o Pacífico Tropical, o Pacífico Sul e o Pacífico Norte, experimentaram MHWs extremas. Para completar, há prejuízos econômicos globais, pois, ao interromper a pesca e a aquicultura, reduz o comércio, e por sua vez, a circulação de dinheiro.
De acordo com as descobertas, os MHWs de 2023 estabeleceram novos recordes de intensidade, duração e extensão geográfica, durando quatro vezes a média histórica e cobrindo 96% da superfície oceânica global. Regionalmente, o aquecimento mais intenso ocorreu no Atlântico Norte, Pacífico Tropical Oriental, Pacífico Norte e Pacífico Sudoeste, respondendo coletivamente por 90% das anomalias de aquecimento oceânico. No estudo, os cientistas mostram que o MHW do Atlântico Norte, que começou já em meados de 2022, persistiu por 525 dias, enquanto o evento do Pacífico Sudoeste quebrou recordes anteriores com sua vasta extensão espacial e duração prolongada. No Pacífico Tropical Oriental, as alterações de temperatura atingiram o pico de 1,63 graus Celsius durante o início do El Niño.
Utilizando uma análise de balanço de calor nas chamadas camadas mistas, os autores descobriram diversos fatores regionais que contribuem para a formação e persistência desses eventos, incluindo o aumento da radiação solar devido à redução da cobertura de nuvens, ventos mais fracos e anomalias nas correntes oceânicas. Segundo os autores, os MHWs de 2023 podem marcar uma mudança fundamental na dinâmica oceano-atmosfera, servindo potencialmente como um alerta precoce da aproximação de um ponto crítico no sistema climático da Terra.
Janaina Bumbeer alerta sobre o que ocorre no Brasil. "Houve um crescimento médio de 100 registros por ano de desastres climáticos entre 1991 e 2023. A intensidade, a frequência está muito alta, então, o que vemos? Existem vários pontos de inflexão que podemos ver e estão acontecendo de forma muito mais precoce do que se esperava", ressaltou.
Palavra do especialista
"Ainda é possível mudar esse rumo, mas o tempo está contra nós. O oceano está claramente sofrendo com a crise climática, mas também é parte essencial da solução. Ele absorve mais de 90% do calor excedente do planeta e cerca de um terço das emissões de CO?, e seus ecossistemas, como manguezais e recifes de corais, são fundamentais tanto para proteger cidades e comunidades costeiras contra eventos extremos quanto para capturar e armazenar carbono. No Brasil, estamos falando de mais de 40% do território nacional na zona marinha e costeira — uma potência azul que tem sido sistematicamente subestimada nas respostas à emergência climática. O que levamos ao G20 e à COP16 no ano passado, à UN Ocean Conference, em junho, e continuaremos defendendo na COP30 é claro: não há enfrentamento da crise climática sem o oceano no centro da agenda, com seus ecossistemas protegidos e seus defensores fortalecidos. O WWF-Brasil vem atuando de forma estratégica para que o país assuma esse protagonismo. Apoiamos a criação, valorização e gestão efetiva e participativa de áreas marinhas protegida, um instrumento-chave de adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Temos um foco especial na conservação dos recifes de coral, o ecossistema mais vulnerável ao aquecimento global. Também atuamos pela interrupção da expansão de petróleo e gás e por uma transição energética justa. E, por fim, trabalhamos para o fortalecimento de políticas públicas que incorporem e deem visibilidade a soluções climáticas baseadas no oceano, como a própria NDC brasileira e o Plano Clima. Não podemos mais tratar o oceano como vítima colateral da crise: ele é um aliado indispensável. Ignorar isso é desperdiçar a melhor chance que temos de virar esse jogo."
Marina Correa é analista de Conservação e líder de Oceanos no WWF-Brasil
Duas perguntas para Janaina Bumbeer, gerente de Projetos na Fundação Grupo Boticário, doutora em Ecologia e Conservação com foco em ambientes marinhos
Nas pesquisas que a senhora acompanha já percebe esse "ponto de inflexão"?
Nós percebemos que há um cenário alarmante que tem se desenhado e estamos percebendo os sinais desse ponto de inflexão cada vez mais precoces. O que se torna mais visível nisso é a intensificação e a frequência dos eventos climáticos extremos, ou seja, eles estão acontecendo de uma forma muito mais frequente sem dar tempo para o sistema natural e nós também, os seres humanos, de se recuperar e com uma intensidade muito maior. O ponto de inflexão é como se fosse o ponto crítico na balança, o que faz com que o equilíbrio mude, que seja, que fique mais pesado para o lado do aquecimento global. E quando muda o ponto de inflexão, não tem mais um retorno e não é possível mais retornar ao estado anterior. O planeta vai entrar em um processo de uma nova adaptação. Não dá pra voltar a partir do momento que tem esse ponto de inflexão
É possível reverter essa tendência ou a senhora vê um caminho sem volta?
Por mais que a gente pare, zere, por exemplo, a queima de carbono, a emissão de combustível, a emissão de carbono de alguma forma, mesmo assim vão continuar aumentando a temperatura. Nós precisamos fazer e ir trazendo a resposta, não é um caminho sem volta no sentido de que, da mesma forma que o planeta vai se adaptar a esse novo sistema, nós também precisamos nos adaptar a esse novo sistema. A adaptação é a palavra para isso. Mitigação e adaptação. Então, primeiro, nós precisamos parar de colocar peso desse lado da balança que pesa ali para o aquecimento, para as mudanças climáticas. Precisamos, sim, levar a sério a redução da emissão de gases de gás carbônico e de gases de efeito estufa, enfim, na atmosfera. Isso temos discutido bastante, mas entra em diversas, indivíduas. Pontos, como a transição energética, mudança de forma de consumo, trabalho em políticas públicas, mudanças nos setores industriais para que a emissão de gás carbônico seja cada vez mais reduzido. Temos um novo cenário para nos adaptar. Precisamos nos preparar e preparar nossos países e municípios para essa realidade. Necessitamos proteger e conservar a natureza, usá-la como parte da solução. Isso vai representar uma grande economia na ação dos desastres ambientais.
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