Medicina do sono

Insônia ameaça a saúde do cérebro, aponta estudo com idosos

No último dia da série de reportagens sobre sono, apresentamos estudos que revelam como a dificuldade crônica para dormir aumenta em 40% risco de comprometimento cognitivo. Impacto equivale a 3,5 anos de envelhecimento do cérebro

Sonecas de até 30 minutos durante o dia podem ser positivas para melhorar a qualidade do sono noturno -  (crédito: Kazuhiro Nogi)
Sonecas de até 30 minutos durante o dia podem ser positivas para melhorar a qualidade do sono noturno - (crédito: Kazuhiro Nogi)

A ciência reforça que dormir bem é um dos pilares mais importantes para a saúde cerebral, da infância à velhice. Pesquisas recentes revelam que tanto a insônia crônica quanto padrões diários de sono excessivamente irregulares — ou rígidos demais — podem acelerar o declínio cognitivo e favorecer mudanças associadas à demência e à doença de Alzheimer.

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Um estudo publicado recentemente na revista Neurology, da Academia Americana de Neurologia, e liderado pelo neurologista Diego Carvalho, pesquisador da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, acompanhou 2.750 idosos cognitivamente saudáveis, com idade média de 70 anos, durante quase seis anos. Conforme a equipe, entre os voluntários, 16% tinham insônia crônica — definida como dificuldade para dormir, ao menos, três vezes por semana, por três meses ou mais.

Os resultados revelaram que os participantes com insônia apresentaram 40% mais chance de desenvolver comprometimento cognitivo leve ou demência do que aqueles sem o distúrbio, um impacto equivalente a 3,5 anos extras de envelhecimento cerebral. Exames de imagem revelaram ainda que esses indivíduos tinham mais lesões na substância branca — indicativos de doença de pequenos vasos, que pode levar a derrames ou demência — e maior ocorrência de placas amiloides, proteína relacionada ao Alzheimer.

Um dos dados mais marcantes surgiu entre os participantes que relataram, no início do estudo, estar dormindo menos do que o habitual nas duas semanas anteriores. Eles exibiam desempenho cognitivo mais baixo — semelhante ao de pessoas quatro anos mais velhas — e maior acúmulo de amiloide, efeito comparável ao observado em portadores do gene APOE 4, fator de risco genético para Alzheimer. Em contraste, aqueles que haviam dormido mais do que o normal tiveram menos alterações na substância branca.

Para Carvalho, um descanso ruim pode ser um sinal de alerta precoce para futuros problemas cognitivos. "Isso reforça a importância do tratamento da insônia crônica — não somente para melhorar a qualidade do sono, mas também para proteger a saúde cerebral à medida que envelhecemos. Nossos resultados também contribuem para um crescente conjunto de evidências de que dormir não se trata apenas de descanso, trata-se também de resiliência cerebral."

Excesso também é ruim

Conforme Marília Terra Fasciani, geriatra da clínica Fasciani Cuidado Integrado, em Brasília, quem dorme menos — pacientes que passam horas rolando na cama, que acordam várias vezes — apresentam acúmulo maior de toxinas, pois a insônia prejudica a limpeza do cérebro. "Todavia o excesso também é um sinal de alerta. Quando o paciente dorme demais, geralmente investigo outras causas. Pode ser o início de neurodegeneração, demência, pode ser depressão, apneia do sono não tratada ou até efeito de algumas medicações."

Faciani detalhou, ainda, que o sono excessivo frequente não é reparador, a pessoa dorme muito, mas acorda cansada. "Isso pode indicar que o cérebro está em processo de declínio ou que há uma fragmentação importante do sono, mesmo com muitas horas de cama. São duas estradas diferentes, mas que ambas representam um destino ruim."

Outra pesquisa, também realizada por cientistas dos Estados Unidos e voltada a adultos de 45 a 89 anos com queixas de memória e sono, analisou um aspecto complementar, a regularidade dos horários de dormir e acordar. Nesse estudo, 458 participantes usaram acelerômetros durante sete dias para monitorar padrões de atividade e sono. Todos passaram por testes cognitivos e exames sanguíneos para medir os níveis de BDNF — uma proteína essencial para a plasticidade sináptica.

Ao analisar os dados, os pesquisadores descobriram uma relação clara: quanto mais regular era o padrão de sono diário, melhor o desempenho cognitivo. Em relação ao BDNF, surgiu uma curva em U invertido, no qual os níveis eram mais altos entre pessoas com regularidade moderada e caíam tanto nos extremos de grande irregularidade quanto de rigidez excessiva em relação aos horários de dormir. Isso sugere que a saúde cerebral depende de equilíbrio — não somente de dormir bem, mas de manter ritmo constante, sem exageros.

Rigidez

Para Rafael Vinhal da Costa, médico do sono e polissonografista do Instituto do Sono Neuromaster, um achado muito interessante do estudo é que tanto a irregularidade extrema quanto a rigidez excessiva dos horários de sono podem ser prejudiciais. "Pessoas que tentam seguir uma rotina extremamente inflexível — dormir sempre no mesmo minuto, sem tolerar pequenas variações — apresentam níveis mais baixos de BDNF. Isso significa que o cérebro pode se tornar menos adaptável às mudanças naturais do cotidiano."

Conforme o especialista, a realidade não é perfeitamente previsível, exige criatividade e resiliência diante de imprevistos. "Quando o comportamento do sono é rígido demais, essa capacidade de adaptação pode diminuir. Não se trata de buscar perfeição, mas sim consistência com flexibilidade. O sono é um dos determinantes de saúde mais negligenciados pela sociedade moderna. Uma rotina de sono moderadamente regular — sem extremos — representa uma das intervenções mais baratas, acessíveis e poderosas para proteger o funcionamento cognitivo, a saúde mental e o envelhecimento."

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Pilar para a vida

Márcia Assis, neurologista, médica do sono e membro da Academia Brasileira do Sono
Márcia Assis, neurologista, médica do sono e membro da Academia Brasileira do Sono (foto: Arquivo cedido)

Dormir exerce papel fundamental no processo de envelhecimento. No cérebro, o sono profundo ativa o sistema glinfático, responsável por eliminar toxinas e proteínas que, quando acumuladas, estão relacionadas ao declínio cognitivo e doenças como Alzheimer. Ademais, o estágio REM fortalece a memória e mantém as conexões neurais eficientes.  Dormir regula mecanismos de reparo celular, reduz inflamação e mantém o equilíbrio hormonal. A falta de sono eleva o cortisol, reduz a melatonina e diminui a liberação do hormônio do crescimento, fatores que, em conjunto, aceleram a perda muscular, prejudicam o metabolismo e aumentam o risco de doenças crônicas. Na pele, as consequências também são visíveis, menos produção de colágeno, pior recuperação de danos diários e aumento de sinais, como linhas finas, flacidez e opacidade. O rosto reflete o que o organismo sente internamente. Dormir bem não é somente uma questão de descanso: é um dos pilares mais importantes para envelhecer de forma saudável, preservando o cérebro, a vitalidade e a aparência.

Márcia Assis, neurologista, médica do sono e membro da Academia Brasileira do Sono

Cuidado com os cochilos

Cochilar durante o dia pode estar associado a um risco aumentado de mortalidade em adultos de meia-idade e idosos. É o que aponta uma pesquisa publicada na revista Sleep e apresentada em congresso homônimo. A Academia Americana de Medicina do Sono recomenda que adultos saudáveis limitem as sonecas no máximo 20 a 30 minutos no início da tarde. Mais que isso pode causar sonolência e prejudicar os benefícios da sesta. 

Os resultados evidenciaram que a duração mediana dos cochilos foi de 0,40 hora por dia; 34% das sonecas foram tiradas entre as 9h e as 11h; 10% entre as 11h e as 13h;14% entre as 13h e as 15h; 19% entre as 15h e as 17h; e 22% entre as 17h e as 19h. Uma análise revelou que dormir mais tempo, ter maior variabilidade na duração dos cochilos diurnos e percentuais mais altos de pestanas por volta do meio-dia e no início da tarde está associado a maiores riscos de mortalidade.

"Ao avaliar os resultados do estudo sobre o sono, ficamos surpresos com a frequência com que os cochilos diurnos eram comuns entre adultos de meia-idade e idosos, com a grande variação em seus padrões de sono diurno ao longo dos dias e com o horário em que dormiam", disse o autor principal, Chenlu Gao, pesquisador de pós-doutorado no Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos. 

Queda de energia

Segundo Aliciane Mota Cavalcante, otorrinolaringologista e médica do sono, existe um fenômeno biológico chamado Processo S, um mecanismo interno e natural que gera uma queda de produtividade entre uma e duas horas depois do meio-dia. "Ele acontece independentemente da alimentação — até quem está em jejum sente essa queda de energia. Quando fazemos um cochilo curto nesse momento, de até 30 minutos, aliviamos a pressão interna de cansaço, elevamos o desempenho no período da tarde e melhoramos a qualidade do sono noturno. Em pessoas com insônia, até mesmo esse cochilo curto pode não ser indicado, mas essa é a exceção."

Embora um rápido cochilo revigorante possa melhorar o estado de alerta e o desempenho durante o dia, dormir mais que 30 minutos pode causar sonolência ao acordar. Essa moleza, ou "inércia do sono", pode prejudicar as vantagens de curto prazo que as pestanas podem oferecer.  "Curiosamente, os dados que demostram os riscos associados à soneca por volta do meio-dia e início da tarde contradizem o que sabemos atualmente sobre a prática, portanto, mais pesquisas sobre essa relação podem ser justificadas", acrescentou Gao.

Para o estudo, os pesquisadores usaram informações de 86.565 participantes cadastrados no UK Biobank, um banco de dados do Reino Unido, com idade média inicial de 63 anos, 57% eram mulheres. Eles foram monitorados durante sete dias, e o cochilo diurno foi definido como sono entre as 9h e as 19h. 

Os dados de mortalidade foram obtidos de registros nacionais. Foi constatado que 5.189, ou 6% dos participantes, morreram durante um período de acompanhamento de até 11 anos. Os resultados foram ajustados para potenciais fatores de confusão, incluindo dados demográficos, índice de massa corporal, tabagismo, consumo de álcool e duração do sono noturno.

Gao observou que os resultados são importantes por destacarem a relevância potencial de se considerar os comportamentos de sono diurno no risco de mortalidade em adultos. "A incorporação de avaliações do sono diurno baseadas em actigrafia — método de monitoramento não invasivo que usa um dispositivo de pulso, parecido com um relógio — nas práticas clínicas e de saúde pública pode oferecer novas oportunidades para a identificação precoce de riscos e intervenções personalizadas para promover a longevidade", frisou Gao. 

 

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postado em 26/12/2025 04:45
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