Visão do Direito

Mulheres na mira digital: Justiça e sociedade contra a violência de gênero on-line

" Os novos contornos dessa violência, estimulada por discursos de ódio e pela disseminação de redes misóginas, levam à espetacularização e banalização da violência"

Renata Gil, juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e conselheira Nacional de Justiça e Roberta Ferme, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e Membro do Comitê Executivo da Ouvidoria Nacional da Mulher -  (crédito: Divulgação)
Renata Gil, juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e conselheira Nacional de Justiça e Roberta Ferme, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e Membro do Comitê Executivo da Ouvidoria Nacional da Mulher - (crédito: Divulgação)

Por Renata Gil* e Roberta Ferme* — A internet, espaço de liberdade e expressão, tornou-se também um território de opressão para milhões de mulheres. A misoginia digital, como aponta Catharine Mackinnon, é a extensão moderna da histórica tentativa de silenciar vozes femininas no espaço público. No Brasil, essa realidade se agrava com o avanço da tecnologia e o aumento, ainda crescente, da violência contra a mulher. Os novos contornos dessa violência, estimulada por discursos de ódio e pela disseminação de redes misóginas, levam à espetacularização e banalização da violência, além de evidenciar o descompasso entre a evolução das ferramentas digitais e os instrumentos de controle disponíveis.

Segundo levantamento do Fundo de População da ONU (UNFPA), 85% das mulheres já sofreram violência online — número que chega a 90% na América Latina. Jovens entre 15 e 25 anos, mais presentes nas redes, são as principais vítimas de assédio. Desde a manipulação de imagens (deepfakes) e extorsão sexual (sextorsão), até o uso de ferramentas de inteligência artificial para perseguição e localização da vítima, explora-se uma gama crescente de possibilidades advindas de um universo ainda não totalmente conhecido, especialmente no que diz respeito ao controle de dados e à responsabilização por danos.

Por outro lado, o grande potencial disseminador, aliado à celeridade e à possibilidade de anonimização da conduta, encoraja uma violência que, por sua rápida exposição e múltiplas formas, silencia denúncias. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, 77 mil denúncias formais de perseguição (stalking) foram registradas no Brasil, embora muitas permaneçam subnotificadas. Apesar de avanços, como a recente Lei nº 15.123/2025, que agrava penas para crimes cometidos com uso de inteligência artificial, ainda há muito a ser feito.

A interseccionalidade agrava o cenário. Mulheres negras, periféricas, indígenas, LGBTQIA+ e com deficiência enfrentam riscos ampliados. Dados do Fundo Brasil revelam que 81% das mulheres negras entre 20 e 35 anos são alvo de discurso discriminatório nas redes. Para mulheres trans, 88,6% das menções no Twitter são associadas a ódio e transfobia.

Barreiras de acesso à internet agravam a vulnerabilidade digital das mulheres. Segundo a União Internacional das Telecomunicações, há 189 milhões de homens a mais que mulheres conectados, o que amplia a exclusão de quem não domina ferramentas tecnológicas. Na América Latina, mais de 89 milhões de mulheres e meninas estão fora do ambiente digital, evidenciando a urgência de uma educação digital inclusiva. Além disso, a desigualdade de acesso impacta diretamente a economia: sua redução em países de baixa e média renda poderia adicionar mais de US$ 1 trilhão ao PIB global. A ONU estima que políticas voltadas à igualdade de gênero poderiam elevar em mais de 20% o PIB mundial.

No Judiciário, magistradas e servidoras enfrentam obstáculos específicos. A Recomendação CNJ nº 102/2021 aponta dificuldades em denunciar agressores por medo de exposição, perda de legitimidade e prejuízos à carreira, além de falsa sensação de ausência de risco. Pesquisa realizada recentemente revela que a violência psicológica é a mais recorrente, seguida por moral, física, patrimonial e sexual.

O Judiciário, atento a essa realidade, alinha-se à Agenda 2030 da ONU, que reforça o compromisso com a igualdade de gênero. A instalação dos Pontos de Inclusão Digital (PID), conforme a Resolução CNJ nº 508/2023, busca ampliar o acesso à justiça em regiões remotas. No Marajó, ações específicas combatem a violência doméstica e a exploração sexual de meninas. A implementação de painéis de monitoramento e medidas protetivas eletrônicas rápidas e eficazes são exemplos de ações concretas contra a violência de gênero.

A Ouvidoria Nacional da Mulher, criada pelo CNJ em 2022, tem sido um canal essencial de escuta e resposta, em parceria com a Corregedoria Nacional de Justiça. A atuação da Ouvidoria inclui campanhas de conscientização, parcerias com plataformas digitais, e incentivo à criação de ouvidorias locais.

A luta contra a violência digital envolve, ainda, o enfrentamento de barreiras climáticas e geográficas. O reconhecimento desse grave problema como uma urgência na construção de políticas públicas integradas entre os Poderes e a sociedade civil — envolvendo educação, capacitação e medidas estruturais preventivas — é essencial para a construção de um ambiente digital mais seguro, justo e inclusivo para todos e todas.

Juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e conselheira Nacional de Justiça*

juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e Membro do Comitê Executivo da Ouvidoria Nacional da Mulher**

 

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Por Opinião
postado em 02/10/2025 04:00
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