Visão do Direito

Feminicídio: o Brasil escolheu conviver com esta guerra

"A lei existe, é robusta e técnica, mas o país que deveria aplicá-la permanece ancorado em práticas misóginas que seguem intocadas nas delegacias, nos fóruns e dentro dos lares"

Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça -  (crédito: Divulgação)
Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça - (crédito: Divulgação)

Por Thaís Cremasco* — O Brasil vive uma guerra cotidiana, sangrenta e ininterrupta contra as mulheres. Não se trata de metáfora ou hipérbole retórica. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública desenham o mapa de um conflito armado unilateral: são quatro mulheres assassinadas por dia, milhares violentadas, ameaçadas, humilhadas e perseguidas por homens que insistem em tratar a vida feminina como propriedade privada. A escalada vertiginosa dos feminicídios, mesmo diante de todo o aparato estatal, revela uma verdade desconfortável que precisamos encarar nos olhos: o país naturalizou a violência de gênero a ponto de conviver com ela como se fosse um dano colateral aceitável da nossa organização social.

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

O paradoxo brasileiro é gritante e doloroso. Temos, em tese, uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger mulheres. A Lei Maria da Penha, reconhecida pela ONU como modelo global, tipifica cinco formas de violência e estruturou uma rede de proteção inédita na América Latina. Mais recentemente, tivemos a sanção da Lei nº 14.994/2024, que tornou o feminicídio um crime autônomo, aumentando a pena para até 40 anos de reclusão e endurecendo a progressão de regime. Juridicamente, o cerco se fechou. Ainda assim, a sofisticação normativa não produziu a transformação cultural necessária. A lei existe, é robusta e técnica, mas o país que deveria aplicá-la permanece ancorado em práticas misóginas que seguem intocadas nas delegacias, nos fóruns e dentro dos lares.

É impossível enfrentar os feminicídios sem olhar para o centro nevrálgico da questão: os homens. Mais de 90% dos homicídios no Brasil são cometidos por pessoas do sexo masculino. São eles que matam mulheres, matam outros homens e também se matam em números epidêmicos. A violência é um fenômeno estruturalmente masculino, não feminino. Quando debatemos o feminicídio, estamos falando de uma manifestação extrema de um modelo de masculinidade frágil, estruturado na dominação, no ressentimento e no ódio ao feminino. A misoginia é a tecnologia social que organiza essa violência, molda o comportamento desde a infância, dá permissão social e oferece justificativas morais para a eliminação simbólica e física das mulheres que ousam dizer "não".

As redes sociais e o ambiente digital aprofundaram drasticamente esse movimento. O algoritmo do ódio ampliou a voz de homens que se sentem autorizados a atacar mulheres, ridicularizá-las, vazar sua intimidade e criar comunidades inteiras — a chamada "manosfera" — dedicadas a propagar o desprezo pelo feminino. A viralização do discurso misógino não é apenas "opinião" ou liberdade de expressão; é combustível para a violência real. O feminicídio começa muito antes do gatilho ou da agressão física: ele nasce na cultura que desumaniza mulheres, que ridiculariza denúncias, que normaliza o controle excessivo, que romantiza o ciúme patológico e que trata agressões como meros conflitos domésticos.

Do ponto de vista estritamente jurídico, é impossível avançar sem enfrentar a impunidade estrutural e a cegueira de gênero no Judiciário. O Brasil ainda convive com uma taxa de condenação insatisfatória nos crimes de violência doméstica e com investigações frequentemente conduzidas sem a devida técnica. A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que se tornou obrigatória, ainda enfrenta resistências conservadoras. Muitos magistrados e promotores ainda hesitam em aplicar a lente de gênero, tratando o crime de ódio como passional. A ausência de análise da motivação misógina fragiliza a responsabilização e impede que o Estado nomeie corretamente a lógica de poder que estrutura esses crimes. É urgente reconhecer a misoginia como elemento central, da mesma forma que o racismo. Só assim o sistema de justiça deixará de tratar agressões como "brigas de casal" e passará a enxergá-las como violações graves de Direitos Humanos.

Além do rigor punitivo, é urgente convocar os homens para o centro da solução. Os atos que tomaram as ruas no dia 7 de dezembro deixaram claro que a luta não pode ser carregada apenas nos ombros das vítimas. Homens decentes precisam assumir o protagonismo no enfrentamento da violência entre seus pares. É preciso quebrar os pactos de silêncio nos grupos de amigos, no futebol, no ambiente corporativo. É preciso confrontar colegas e familiares que assediam ou agridem, abandonando o conforto cúmplice de observar à distância enquanto mulheres morrem. Não basta não bater; é preciso ser ativamente antirracista e antimisógino.

O feminicídio não é uma fatalidade meteorológica; ele não é inevitável. Ele é sustentado por escolhas coletivas, institucionais e culturais diárias. E escolhas podem ser transformadas. Vencer essa guerra exige mais do que leis penais duras: exige educação afetiva nas escolas para desarmar os meninos, responsabilização séria dos agressores, protocolos do CNJ aplicados de forma rigorosa, políticas públicas de acolhimento contínuas e um país que finalmente recuse a ideia de que a vida de mulheres é descartável. Podemos vencer essa guerra quando o Brasil decidir, de fato, que nenhuma mulher é tolerável como baixa dessa batalha.

Advogada especializada em gênero e saúde da mulher e direito do trabalho e previdenciário. Coordenadora do Núcleo de Violência contra a Mulher da OAB/SP*

  • Google Discover Icon

Tags

Por Opinião
postado em 18/12/2025 04:00
x