
Gregório Duvivier sempre foi obcecado pelas palavras. Desde criancinha, ficava intrigado com algumas sonoridades, com as atribuições de significados e com o poder de uma língua definir todo um povo. "Sempre fui um obcecado pela palavra, estudei letras por causa dessa obsessão", conta o ator, que sobe ao palco da Sala Martins Pena (Teatro Nacional) na terça (2) e na quarta-feira (3) com a peça O Céu da língua, parte da programação do Cena Contemporânea.
Vista por mais de 100 mil pessoas em todo o Brasil, a peça tem feito um sucesso que Duvivier atribui ao interesse genuíno das pessoas pelo idioma. "Acho que isso significa que existe, sim, um interesse das pessoas pelas palavras. O que não existe, muitas vezes, é o acesso, a apresentação", diz. O ator assina o texto da peça e Luciana Paes, parceira de obsessão linguística, ficou com a direção e a dramaturgia. Theodora Duvivier, irmã do ator, conduz as projeções e a direção musical é assinada por Pedro Aune. "Não tem um personagem. A peça é um híbrido, tem um pouco de stand up, porque estou sozinho no palco, mas também tem um musical, porque o Pedro canta junto. A Theodora faz projeções, então tem um diálogo com o visual, o artístico e a performance. Está nessa esquina improvável entre os gêneros", explica.
A música é importante no espetáculo e conta, também, com a voz de Duvivier que, em uma apresentação no Rio de Janeiro, acabou cantando uma música de Caetano Veloso enquanto o compositor assistia da plateia. "Foi emocionante", garante. "A peça é também um tributo a Caetano Veloso. Não era pensado, a princípio, mas a gente foi escrevendo e foi entendendo que o Caetano tinha tratado tudo isso em Livros, em Come tu mi vuoi, ou O que não se vê. Caetano traduziu melhor do que ninguém tudo o que a gente estava dizendo. Na obra toda. A obra dele é uma obsessão com a palavra. Ele tem essa mesma obsessão nossa", acredita o ator, que também tem no escritor e linguista Caetano W. Gallindo, autor de Latim em pó e Na ponta da língua, uma fonte de inspiração. "Temos o tema da língua em comum e um olhar sobre a língua sem preconceitos. O Gallindo tem uma coisa legal: ele é um poeta linguista, faz poesia com a palavra. Ambos, os livros e a peça, são convites para olhar a língua de maneira mais lúdica. A peça fala sobre a potencialidade poética da língua. É uma comédia poética", diz Duvivier.
Em entrevista, ele fala sobre a obsessão pelas palavras, sobre a dinâmica entre piada e poesia em O Céu da língua e sobre a escolha do título do espetáculo.
Entrevista // Gregório Duvivier
Por que decidiu criar e montar uma peça sobre a língua portuguesa?
A peça vem da vontade de falar da língua, não só a portuguesa, sobre língua, essa ferramenta que nos faz humanos, essa ferramenta inaugural da humanidade que é a palavra. Desde criança, sou obcecado com a palavra e com as letras de modo geral. Aprendi a ler com 4 anos e sozinho, porque tinha uma obsessão com as letras. Antes de saber escrever tenho cadernos e cadernos que eu dizia que estava escrevendo. É anterior à escrita. Sempre perguntei e ninguém sabia me explicar de onde vinham as palavras. Quem escolheu? Fronha, quem inventou essa palavra? E como as pessoas concordaram? E por que concordaram? Sempre fui muito fascinado com essa capacidade humana de batizar as coisas. E o que faz com que umas palavras peguem e outras não? O que determina a vida útil de uma palavra. São perguntas que eu fazia e não tinha resposta e não tenho até hoje. A peça é uma tentativa não de responder às perguntas, mas de fazê-las. Como as palavras morrem? É possível perecer?
A peça tem um lado poético também e já foi vista por mais de 100 mil pessoas, num país que lê pouco, não mais que quatro livros por ano. Como você encara essa contradição?
Às vezes, a poesia é apresentada de uma maneira muito chata, seja de forma acadêmica, ou cafona. Os saraus de poesia são insuportáveis. E é importante colocar a poesia no lugar dela, ao rés do chão, como dizia Antonio Cândido. O brasileiro gosta de poesia, só não sabe. A gente tem uma vocação poética no uso da língua que é criativo e até decolonial. É questão mesmo de entender e, para usar uma palavra cafona, se empoderar da palavra.
Como funciona a dinâmica piada-poesia na peça?
Essa peça tenta encontrar esse entrelugar da poesia e do humor. A gente alterna. E acho que é perfeitamente possível alternar as duas coisas. É engraçado porque sinto que tem um preconceito do humor com a poesia e o contrário também. O pessoal da poesia despreza um pouco a poesia bem-humorada. E nossa melhor poesia é humorada. Quintana, Drummond, Bandeira, nossa melhor poesia tem muito humor.
Você fala de reformas ortográficas, palavras esquecidas e outras inventadas e repetidas à exaustão conforme a moda. Como pode a língua portuguesa render tanto?
A língua portuguesa é um manancial. E acho que todo mundo que fala uma língua tem um tesouro nas mãos. Não falo muitas, mas tenho a impressão que o português é especialmente rico pelo seu caráter muito híbrido. A língua tem um DNA muito misturado, assim como o do povo, então a gente, na nossa língua, fala muito árabe, muito africano e muito tupi. O português brasileiro é riquíssimo porque é esse encontro, uma pororoca linguística. Quando a gente fala cafuné, a gente está falando quimbundo, mas nhaca, a gente está falando tupi. A gente está o tempo todo alternando entre línguas que não têm contato normalmente.
Por que o título Céu da língua?
A gente fala muito na peça das metáforas mortas, então 'céu da boca' é uma metáfora, a primeira pessoa que falou era um poeta, o segundo, um dentista. Então, a gente tenta criar metáforas novas. O que é o céu da língua? O lugar onde as palavras vão quando morrem, por exemplo.
Diversão e Arte
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