CRÔNICA DA CIDADE

Hermeto e a música que segura o mundo

"O alagoano era a própria definição de cidadão do mundo — global no sentido menos banal e mais profundo do termo. Era inteligível e navegava por diferentes gêneros com seus hermetismos pascais"

Hermeto Pascoal -  (crédito: Coqueirão Pictures/Divulgação)
Hermeto Pascoal - (crédito: Coqueirão Pictures/Divulgação)

Tem dias que acordo me sentindo especialmente privilegiada. Ter compartilhado o mesmo tempo e espaço que Hermeto Pascoal é mais do que acaso. Supera a sorte. Talvez a descrição precisa só ele, o Bruxo, pudesse fazer, tirando o som de um de seus objetos-percussão encantados.

A passagem de Hermeto me ajuda a entender cada dia mais a dimensão daquele senhor barbudo e discreto que vi passar pelos corredores do jornal uma ou duas vezes. Nos primeiros momentos, foi difícil acreditar que se tratava dele mesmo, mas era.

No anúncio oficial da página do artista, um poema musical para deixar acalentar o coração: "Este canto vem, de longe / A distância não sei dizer / Salve, salve a toda a gente / Que vive e deixa viver / Aqui vai nosso abraço / Com o som e o saber / Tirando de nossas mentes / As palavras pra dizer / A música segura o mundo / Enquanto a gente viver / É a maior fonte sem fim / De alegria e prazer / Toquem, cantem, minha gente / Até o dia amanhecer".

O alagoano era a própria definição de cidadão do mundo — global no sentido menos banal e mais profundo do termo. Era inteligível e navegava por diferentes gêneros com seus hermetismos pascais, que tanto nos confundem quanto nos encantam. Arrebataram, por exemplo, Caetano Veloso, criador do termo. Ele, por sua vez, com as caetanices que lhe são peculiares.

"Será que apenas os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons / Seus sons e / seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão / Dessas trevas e nada mais", cantou o baiano, deixando explícita a potência de dons como os de Hermeto, que, como curiosamente destacou o conterrâneo nordestino, não tinha nada de hermético.

Pelo contrário. Além de genial, o multi-artista era generoso. Compartilhava com os companheiros de ofício e conosco, seu público, aquilo que rodava sua mente inquieta. Para tentar traduzir, pintava, coloria, usava todo tipo de objeto como canva. E, pasmem, Hermeto tinha as canetinhas que viraram tendência entre jovens e adolescentes, aquelas do estojo preto comumente encontrado em kits com o livro de colorir chamado Bobbie Goods.

Ele, é claro, dispensa o livro de contornos pré-definidos. Preferia os contornos da própria mente criativa e inquieta. O músico Pedro José tem se dedicado a produzir um arquivo digital para a música de Hermeto, reunindo partituras que ele escrevia nos mais diferentes formatos — até mesmo num assento de vaso sanitário — e também alguns desenhos e cores pintados sobre papel, papelão e tecido. Assim, sem sorte nem acaso, Hermeto nos acompanhará por mais zil anos.

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postado em 17/09/2025 18:42 / atualizado em 17/09/2025 19:20
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