
José Miguel Wisnik é, a um só tempo, instrumentista, compositor, professor de literatura e ensaísta. Geralmente, quem exerce esses talentos costuma separá-los. Mas, no caso, Wisnik não segmenta as habilidades e as atividades. Essa singularidade é uma das razões do olhar original que lança sobre a literatura e sobre a canção brasileira na série de ensaios reunidos no novo livro, Viagem do recado: música e literatura (Cia das Letras), tema do projeto Sempre um papo, hoje, às 19h30, na Caixa Cultural, com mediação do jornalista Matheus Leitão. Caetano Veloso, Chico Buarque, Villa-Lobos, Tom Jobim, Guimarães Rosa, Gilberto Gil e Mario de Andrade são alguns dos personagens dos ensaios. E, nesta entrevista ao Correio, Wisnik fala sobre como concilia os talentos, as confluências entre música e literatura e força da canção popular brasileira como desaguadouro das inquietações e invenções de múltiplas linguagens.
Você é compositor, letrista, cantor, professor e ensaísta. Como essas múltiplas habilidades se articulam na sua vida e nos ensaios do livro Viagem do recado: música e literatura?
Bom, como tive essa formação de músico e de literatura, me tornei professor e escritor. No início, representavam para mim uma divisão de áreas distantes, mas elas se juntaram. E, com o passar do tempo, descobri que não estou sozinho. No Brasil, existe essa permeabilidade entre as áreas diversas. Existem músicos, compositores e cantores que são escritores. Tem poetas do livro que são poetas da canção. Tem pessoa que é artista plástico e é escritor e compositor. Tem quem atue no campo letrado da literatura e da performance nos shows. Nomes como Arnaldo Antunes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Antonio Cicero, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Martinho da Vila, Cacaso transitam em várias áreas. Vinicius abriu os caminhos, Antonio Cicero, Martinho a Vila, Alice Ruiz e Nuno Ramos são nomes que transitam em várias áreas. Acho que as minhas atividades correspondem a essa carreiras e o meu livro trata disso. É um conjunto de ensaios sobre esses cruzamentos.
O compositor piauiense-brasiliense Climério Ferreira, que se tornou letrista influenciado por Vinicius de Moraes, afirma que a tradução das letras das canções norte-americanas ou francesas costumam ser decepcionantes ante a poesia da canção brasileira. Você concorda?
Eu diria que no Brasil há um espécie de retorno às fontes musicais da poesia. A gente se acostumou com a poesia escrita no livro. Mas ela tem uma tradição secular e milenar de ser poesia cantada. Muito da poesia grega que a gente reverencia como clássica era música na origem. Há momentos em alguns lugares em que esse reencontro se dá. É conhecido a poesia provençal do século 12, reconhecida com um dos momentos mais relevantes de alta poesia era era cantada. Dizia-se que poesia sem música era como moinho sem água. Acho que o Brasil houve uma revivescência desse momento na segunda metade do século 20. Eu chamei de gaia ciência a esse saber alegre do encontro de poesia e música. Acho que existe uma gaia ciência e essa tradição, que foi especialmente forte no século 20, continua viva de algum modo. Há dois domingos, a canção popular teve o poder de contribuir para um salto nas manifestações de rua no Brasil, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Djvan, entre outros. O chamado dos compositores provocou na sociedade um desejo de protestar contra uma medida contra a PEC da blindagem ou da bandidagem, como passou a ser chamada. A canção continua tendo uma força no Brasil como poucas linguagens. É uma força de recado.
E, por falar no tema, qual é a origem e o sentido do título do livro Viagem do recado: música e literatura, inspirado em um conto de Guimarães Rosa?
Tem um conto do Guimarães Rosa em Corpo de baile, chamado Um recado do morro, que narra uma viagem pelo sertão. Um grupo vai viajando e encontrando recadeiros, personagens que vivem à margem.Vão passando adiante um recado de que o Morro da Garça falou coisas. E esse recado vai se fazendo até virar uma canção. Acho que esse é um texto significativo desse fato de que existe uma vocação da canção, desaguadouro de conteúdos difusos que tomam forma na canção. E isso eu acho que é um destes textos literários que tratam dessa força no Brasil. Por isso, tenho um ensaio no livro sobre o conto e convido o leitor a viajar com o texto de Guimarães Rosa e dos recados que vai produzindo. Esse ensaio tem uma certa centralidade e dá nome ao livro porque, além do ensaio, ele também pode se dizer que se estende para todos os textos, são diferentes formas desse recados entre música e literatura no Brasil.
Essa conexão entre música, literatura e política seria uma das singularidades e riquezas brasileiras?
Sim, acho que é uma singularidades. Em outros lugares, normalmente, há uma demarcação de fronteiras muito mais definidas. A pessoa atua em um campo ou em outro ou em um nível da literatura da chamada alta cultura. E, outros, na cultura de massas, mas no Brasil você vê pessoas transitarem livremente por esses campos. Acho que é uma singularidade e uma riqueza. Ao mesmo tempo, como tudo no Brasil tem dupla face, é o sinal de uma carência e de uma falta de consolidação da cultura letrada. Temos um letramento médio mais baixo do que outros países da América Latina e de Portugal. A música de concerto é menos estabelecida. A quantidade de leitores é expressiva. O Brasil chegou a ter uma grande literatura, mas não tem uma proporção de leitores compatível com a população. Esse trânsito cultural está ligado à falta de uma cultura letrada consolidada e, ao mesmo tempo, é uma saída surpreendente, enriquecedora e até salvadora.
O fato de ser músico permite uma leitura mais rica da poesia e da literatura?
Não sei se saberia responder a essa pergunta. Isso é natural, faz parte da minha própria formação, estudei piano, escrevi O som e o sentido, uma outra história das músicas. Na minha formação, vim tocando e pensando a música. Mas quando a gente vê, poesia é também ritmo, necessariamente. A literatura pede da gente uma cabeça polífônica quando lemos um poema ou uma escrita literária do Guimarães Rosa, pois tem uma trama de história, mas muitos sons, ao mesmo tempo. Quando toca piano, a mão direita toca uma coisa e a esquerda a outra. Então, você acaba se acostumando a lidar com essas superposições. Quando a gente lê poesia ou literatura, ela pede, muitas vezes, uma leitura desse tipo. Então, o fato de ser professor de músico e professor de literatura , no modo de ver e de escrever, está ligado a essa combinação de percepções sonoras e de palavras, mas, ambas, são rítmicas. O ritmo sempre é fundamental para a força e o efeito da poesia.
Eu fiz uma matéria nos anos 1990 ouvindo poetas e intelectuais sobre quais eram os versos mais bonitos da poesia brasileira e ocorreram surpresas. Para Manoel de Barros, era "Tire o seu sorriso do caminho/que eu quero passar com a minha dor". Você aponta quais são os versos mais bonitos da canção brasileira?
Não, eu tenho dificuldade em fazer esse tipo de escolha. Para mim, cada um é belo no seu modo de ser. A música brasileira é uma loucura de belezas infinitas. Os versos são bonitos em função de de onde eles vem e para onde eles vão. O livro tem um ensaio intitulado Vinicius cancionista. Quando Vinicius faz poesia de livro é uma coisa. Quando ele faz de palavra é outra. A poesia da letra tem exigências diferentes no modo de se juntar com a melodia. O cancionista e o poeta Vinicius sabe distinguir as duas coisas.
No ensaio sobre Guimarães Rosa, você escreve:" Devo insistir, então, que a invenção de um ponto de vista ou de escrita capaz de postular a incomensurabilidade de duas culturas, separadas pelo limiar da escrita como uma verdadeira terceira margem, é o ponto chave da escrita." Poderia comentar esse trecho?
Tomando o Grande Sertão: Veredas como exemplo, o personagem que fala pertence a uma cultura oral sertaneja mesmo que ele tenha se tornado um letrado. Riobaldo fala com outro homem da escrita, que escuta e anota. O que faz com que a própria narrativa do livro que estamos lendo seja a escrita de alguém que falou, São esses limiares da fala e da literatura que estão em jogo no livro. E, afinal, é o que eu chamo de terceira margem. Quando a gente lê, é pura oralidade, e, ao mesmo tempo, é pura escritura. É como se o Guimarães Rosa unisse o oral e o hiperletrado. Por isso, eu diria que o livro é uma terceira margem de um recado, que passa de Riobaldo para o interlocutor e, dele, para nós.
Sempre um papo
Conversa com José Miguel Wisnik, hoje, às 19h30, na Caixa Cultural.
Diversão e Arte
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