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Viver sem a vergonha de ser feliz

Em cartaz no streaming, O filho de mil homens, adaptação do romance de Valter Hugo Mãe, apresenta Rodrigo Santoro em personagem que provoca empatia

Família unida com os personagens de Jonny Massaro, Rebeca Jamir, Rodrigo Santoro e 
Miguel Martin     -  (crédito: Fotos: Marcos Serra Lima/Netflix)
Família unida com os personagens de Jonny Massaro, Rebeca Jamir, Rodrigo Santoro e Miguel Martin - (crédito: Fotos: Marcos Serra Lima/Netflix)

De personagens arredios, que acusam carga de desconforto social, até uma calorosa travessia emocional, capaz de atenuar vidas de solidão e um legado de constante rejeição: o enredo do mais novo filme brasileiro da Netflix, O filho de mil homens, traz embutido o mérito de gerar empatia.

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Aos 49 anos, o diretor paulistano Daniel Rezende, sempre lembrado pela indicação ao Oscar e pela vitória (em cima de filmes de Peter Jackson e Martin Scorsese) do prêmio inglês Bafta, com a montagem de Cidade de Deus, embarcou na adaptação literária com agudo respeito pelos "personagens que conseguem se encontrar e se apoiar apesar de seus profundos traumas". Coproduzido, entre outros, pelo brasiliense René Sampaio, o filme, gravado entre Búzios e pontos da Chapada Diamantina, tem a presença central de Rodrigo Santoro e a narração de Zezé Motta.

A promoção de bem-estar coletivo e a reconsideração de papéis sociais, com a recriação de novos espaços para cada personagem, faz do protagonista Crisóstomo uma testemunha ativa, ao intermediar transformações. Na trama, um pescador complacente viverá com o órfão Camilo (Miguel Martins), designado seu filho; e agrupará em torno de si, Isaura (Rebeca Jamir) e Antonino (Johnny Massaro, na fase adulta, antecedido por Antonio Haddad), ambos abatidos por preconceitos.

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A vida de Crisóstomo impulsiona trechos no livro como: "Disse à natureza que, por fraca compensação, arranjara um boneco para abraçar e que tentara ensinar-lhe alguma coisa sobre como deitar as redes à água. Confessou que lhe falava como se falasse a uma pessoa de verdade, como se estivesse maluco". A publicação veio em 2011, sob autoria do angolano Valter Hugo Mãe, que adotou cotidiano português, e, tendo assistido ao filme, chorou, diante da sensibilidade da equipe com o material adaptado.

Diretor de filmes melancólicos como Bingo, o rei das manhãs e de adaptações solares do universo criado por Mauricio de Sousa (nos dois Turma da Mônica — Laços, de 2019, e Lições, de 2021), com O filho de mil homens, Daniel Rezende,  se volta ao introspectivo, num longa-metragem que traz a fotografia de Azul Serra e belos personagens para as atrizes Juliana Caldas e Grace Passô.

Entrevista // Daniel Rezende, cineasta

Qual foi a temática do novo filme que mais quis impregnar no espectador?

O que mais me tocou na leitura do livro O filho de mil homens foi a abordagem poética e sensível da conexão humana. Os personagens conseguem se encontrar e se apoiar apesar de seus profundos traumas e das angústias geradas por uma sociedade que os oprime com seus padrões sociais e crenças limitantes. No filme, foquei especialmente na escuta mútua e no acolhimento que levam as protagonistas a formar uma família intencional, unida pelo afeto genuíno e pela empatia.

No que na literatura de Valter Hugo Mãe dialoga mais agudamente com o contemporâneo? O que você mudou para mais se aproximar dos espectadores de cinema?

O livro toca em questões universais. Partimos de personagens que sentem a angústia do não pertencimento e a solidão, sendo conduzidos a um acolhimento verdadeiro e sensível que cura feridas e abre espaço para relações interpessoais autênticas. Apesar de atemporais, esses sentimentos se tornam urgentes em um momento de extrema solidão social, onde a conexão humana verdadeira é essencial em meio a algoritmos e artificialidades. Crisóstomo nos convida a um olhar empático, curativo e não julgador. A maior dificuldade na adaptação foi transformar a poética da palavra de Valter em uma poética imagética. Para isso, apostamos nos silêncios, nos olhares, nas interações sem palavras, nos símbolos e nas metáforas. O olhar do Crisóstomo é curativo; ele não só cura as personagens, mas também o espectador, que terá uma sensação parecida com a da leitura, por meio de uma experiência cinematográfica completamente diferente.

Como arriscar em situações com doses de realismo mágico, sem incorrer no grotesco?

O realismo mágico entrou no filme como sonhos e metáforas, algumas vezes com o uso de efeitos especiais, como nas imagens do fundo do mar e o uso das borboletas. Mas também se manifestou na escolha das locações, no figurino e nos objetos. Tudo o filme existe, mas quando e onde? Não sabemos, e essa incerteza nos transporta para uma outra frequência. Nesse não lugar e não tempo, podemos olhar o outro e nos enxergar. O mágico está no filme quando entramos nos sentimentos das personagens, nas suas projeções. E esse é o lugar onde tudo pode. Por isso, toda a nossa abordagem foi feita com muita sutileza e delicadeza.

As tramas entrelaçadas — tecidas ao tempo irregular — foram um desafio na montagem?

A estrutura temporal do filme foi estabelecida desde o roteiro, sendo um verdadeiro quebra-cabeça concebido pela dramaturgia, de modo que alteramos muito pouco a ordem narrativa durante a montagem. O desafio da montagem foi acreditar nos silêncios, nos olhares, nas emoções. assim, entendemos até onde podíamos esticar a narrativa, quanto tempo precisávamos para sentir e nos conectar com as dores e conquistas de cada história.

Qual foi a estrutura ofertada pela Netflix? Foi producente para ti, enquanto brasileiro? Temeu pela padronização quando fez negócio com uma plataforma tão globalizada?

A Netflix demonstrou uma visão muito clara ao escolher este projeto, pois ele se alinhava perfeitamente com o tipo de narrativa que eles estavam buscando para seu catálogo. A parceria foi, de fato, a melhor possível. Entre a direção, as produtoras, Biônica Filmes e Barry Company (do brasiliense René Sampaio) e Netflix, houve uma troca constante e extremamente respeitosa com a autoralidade e a essência original do projeto. Eu só tenho a agradecer por esse apoio, pois em nenhum momento perdemos a integridade e o sonho inicial de todos que acreditaram neste filme.

Qual a cobrança da popularidade dos resultados com algorítimos? Te assustou?

Esse é um projeto ousado em todos os sentidos. Ele me tirou completamente da zona de conforto em que eu estava com os trabalhos anteriores, especialmente porque foi a primeira vez que escrevi um roteiro. Desde o início, pensamos no filme, na adaptação dessa história e na forma como as emoções das personagens e o ritmo dos silêncios conduziriam a narrativa. Em tempos de algoritmos, é sempre importante ter filmes que desafiam os caminhos já estabelecidos e que se permitem ousar. Acredito que esse público existe, e ele costuma reconhecer e agradecer a coragem de quem se dedica a projetos assim. Mais uma vez, valorizo muito a iniciativa da Netflix ao apostar neste filme.

Filmar sexo trouxe que desafios?

As cenas de teor sexual, mesmo as mais duras e difíceis, foram tratadas no filme com a máxima sutileza e cuidado. No entanto, meu foco principal estava na sequência entre Crisóstomo e Isaura. Nossa intenção ali era criar um momento de profunda conexão e presença entre duas pessoas que nunca foram tocadas com genuíno carinho. Trabalhamos os detalhes: o olhar, a respiração, o toque sutil, o cheiro, o consentimento e, acima de tudo, a presença. Acredito que poucas cenas de intimidade na história do cinema atingem esse grau de delicadeza emocional. Para alcançarmos isso, fizemos uma preparação intensa com uma preparadora corporal e uma coordenadora de intimidade. E a entrega de Rodrigo Santoro e Rebeca Jamir foi absolutamente total. Sua generosidade e vulnerabilidade em cena foram a chave para materializar esse encontro com tamanha profundidade e verdade.

A parceria com o Rodrigo Santoro tem vindo, com certa regularidade. Como vê o rendimento dele?

Rodrigo é um patrimônio cultural do nosso país. Tive a sorte de trabalhar com um ator tão inteligente, exigente, provocador, sensível e talentoso. Nossa primeira parceria, no Turma da Mônica: Laços, onde ele deu vida ao Louco, gerou uma troca tão gigante que desejávamos repetir.

Que nível de sensibilidade foi depurado, em O filho de mil homens?

Dar vida a Crisóstomo foi, definitivamente, um desafio imenso: um personagem difícil, que poderia facilmente cair no caricato ou no pueril dentro da fábula. A busca principal, feita em parceria e com a total dedicação de Rodrigo, foi humanizar o personagem e deixá-lo de carne e osso. Trabalhamos em estágios: iniciamos com a discussão racional e a construção de seu histórico. Depois, mergulhamos no trabalho corporal para definir seus movimentos e gestos, e então desconstruímos o modo como ele falava. Por último, fizemos uma imersão sensorial e emocional intensa, usando técnicas, como respiração, sutileza e meditação ativa. Rodrigo gosta de desaparecer nos papéis; assim, todo o trabalho do figurino de Manuela Mello, da caracterização de Martin Trujillo, da arte de Taísa Malouf e da fotografia de Azul Serra foi essencial para trazer nosso pescador fabuloso à vida, junto à sutileza da interpretação de Rodrigo e seu olhar curativo. Vejo que todo o elenco do filme está maravilhoso: Rodrigo brilha e seu trabalho se complementa através de toda essa família que se entregou a esse projeto com afeto e carinho.

 

  • Intimidade milimétrica entre Crisóstomo e Isaura, personagens de O filho de mil homens
    Intimidade milimétrica entre Crisóstomo e Isaura, personagens de O filho de mil homens Foto: Marcos Serra Lima/Netflix
  • A atriz Juliana Caldas em cena do longa da Netflix
    A atriz Juliana Caldas em cena do longa da Netflix Foto: Marcos Serra Lima/Netflix
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postado em 24/11/2025 06:00
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