Música

O último sopro de Odette Ernest Dias

A flautista Odette Ernest Dias morreu na madrugada de ontem, aos 96 anos. Ex-professora da UnB, a instrumentista foi um dos pilares na criação do Clube do Choro de Brasília

Morreu, na madrugada de ontem, a concertista e flautista Odette Ernest Dias, aos 96 anos. Nascida em Paris (França) e radicada no Brasil, ela foi professora da Universidade de Brasília (UnB) e um dos pilares na fundação do Clube do Choro. O óbito ocorreu no Rio de Janeiro, às 3h30, no hospital Casa de Portugal, de causas naturais. Ela deixa seis filhos e será velada na capital fluminense, onde morava desde 1994. A informação foi confirmada pela família.

Segundo a filha Beth Ernest Dias, a artista não estava doente. "Envelheceu, ficou muito fraca, tinha dificuldades respiratórias. Resistiu até o último minuto. Era durona", afirmou a também flautista. Nascida em Paris em 1929, a instrumentista francesa chegou ao Brasil aos 23 anos. Fez parte, inicialmente, da Orquestra Sinfônica Brasileira, a convite do maestro Eleazar de Carvalho.

"Eu sempre escuto depoimentos de pessoas falando que quando a mamãe chegou ao Brasil, ela gerou um certo furor por ser a flautista francesa que havia acabado de chegar para integrar a orquestra", contou Beth. "Ela se distinguia muito por conta do som maravilhoso de flauta que tirava. Rapidamente, aquela sonoridade começou a ser cobiçada por maestros arranjadores", disse a filha de Odette.

Para ela, a mãe foi muito mais do que apenas mestre da música. "Ela foi um exemplo de mulher. Na década de 1950, veio para o Brasil muito jovem, com apenas 23 anos, e encarou a travessia do Atlântico para desbravar o desconhecido, tanto geograficamente quanto musicalmente. Era um mundo que ela não conhecia", enalteceu.

Apesar de ativa e saudável, Odette sofreu com a morte de colegas nos últimos anos. "Da geração dela, são poucos que ainda estão vivos. Eu mesma repito uma frase de Pixinguinha: 'Meu maior medo é acordar, um dia, e não ver ninguém do meu tempo'. E acho que a mamãe foi ficando um pouco com esse medo também, a ponto de, quando algum conhecido morria, a gente não contava mais, porque ela não esboçava mais reação", revelou Beth.

Odette em Brasília

Brasília entrou na vida de Odette em 1974, quando veio à capital integrar o quadro de professores da Universidade de Brasília (UnB). A flautista Ariadne Paixão destacou que a francesa formou e influenciou gerações de músicos no Brasil inteiro: "Ela foi uma pessoa sempre presente na minha vida, desde criança. Inúmeras são as lembranças que tenho dela, seja como professora ou convivendo fora das paredes da sala de aula. Ela nos deixa um grande legado musical, intelectual e humano".

Para Henrique Cazes, músico e professor, Odette atuou como pioneira na música de Brasília. Ainda nos anos 1960, incluiu Pixinguinha, de quem foi amiga, no currículo da flauta para os alunos que estudavam o repertório de música, então chamado de erudito, atualmente de concerto. Na UnB, pesquisou sobre diversos compositores, incluindo Mathieu-André Reichert, pioneiro belga do choro brasileiro, sobre quem escreveu um livro.

 

Arquivo pessoal -
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"Temos que agradecer muito por essa contribuição que ela deu à música brasileira. Eu gostava muito de conversar com ela, embora, vamos dizer que de 30% a 40%, a gente não conseguia se entender, porque ela, com tantos anos de Brasil, manteve um sotaque que era quase inexpugnável. Mas o que ela tinha a dizer era tão interessante que a gente passava por isso, superava e acabava compreendendo toda a grandeza da mensagem que ela tinha para nos dar. Temos que agradecer muito a ela", pontuou Cazes.

Três anos depois da chegada à cidade, Odette tornou-se um dos pilares da fundação do Clube do Choro, espaço que se consolidou como referência cultural e patrimônio imaterial do Distrito Federal. "Ela foi uma grande incentivadora do gênero musical na cidade. Abriu as portas da própria casa, junto do marido Geraldo e os filhos, também músicos, para nossos encontros semanais", recordou Reco do Bandolim, presidente da instituição.

O também fundador da Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello definiu Odette como "uma francesa apaixonada pelo Brasil". "Ela deu diversas demonstrações dessa paixão, sobretudo por ter amado tanto um gênero que está na base da música brasileira, que fala da nossa alma profunda", avaliou. "No ano passado, conseguimos o reconhecimento do choro como Patrimônio Cultural do Brasil e fico feliz que ela pôde testemunhar isso", completou. 

Ligiana Costa, cantora e pesquisadora de música, ressaltou que Brasília se tornou a capital do choro graças ao amor de Odette pelo gênero e pela cidade. "Ela era, além de mestra de seu instrumento e grande artista, uma pesquisadora de compositores brasileiros das mais ativas. Sempre achei maravilhoso imaginar a chegada dela no Brasil, o apaixonamento pela música daqui, a decisão de ficar e semear música aqui, mas sem nunca soar colonizadora, pelo contrário", admirou.

Bandolinista reconhecido internacionalmente, o carioca radicado brasiliense  Hamilton de Holanda lembrou-se dos momentos em que dividiu palcos e estúdios de gravação com Odette. "Foi uma alegria e uma experiência inesquecível gravar com ela. Jamais vou esquecer o prazer que ela teve ao improvisar comigo e com o Carlos Malta", lembrou Holanda. "É justo dizer que a pedra fundamental do Clube do Choro — no sentido mais humano e simbólico — foi a casa da professora Odette. Sua partida é uma grande perda para o choro, para a música de Brasília e para a música do Brasil", lamentou o músico.

Primeiro presidente do Clube do Choro, Antônio Licio, vindo de Belo Horizonte, onde era professor universitário, chegou a Brasília em 1974. Já com alguma experiência na flauta, procurou a Escola de Música de Brasília (EMB). Não foi aceito, com a justificativa de que o trabalho tomaria todo o tempo, mas foi recomendado a procurar uma professora recém-chegada à cidade, Odette. Foi aluno dela de 1975 até 1977.

"Nesse período, falamos muito sobre choro no Brasil. Ela adorava o gênero e me perguntava se eu gostava de 'chorro', que era o sotaque carregado dela. E eu disse que amava, apesar de ser muito difícil, mas que eu começaria a estudar se ela me ajudasse. E aí nasceu a ideia de fazer um Clube do Choro, que era uma divulgação do cantor Paulinho da Viola. E, para tanto, batemos à porta do governador de Brasília, Elmo Cerejo, para pedir um espaço que pudéssemos fazer um quiosque", contou, ao falar sobre a criação da instituição.

Odette foi, também, sócia-fundadora e sócia honorária da Associação Brasileira de Flautistas (Abraf). Sérgio Morais, presidente da instituição, a descreveu como "mãe de todos os flautistas brasileiros". "Eu tive a oportunidade de ser aluno dela no Festival de Música Antiga de Juiz de Fora e aprendi sobre tudo, não só sobre flauta, mas sobre a vida e relações interpessoais. Ela era uma pessoa agregadora", afirmou.

O músico relembrou que, em um protesto pelo caso da morte de Galdino, indígena pataxó assassinado em 1997 em Brasília, Odette era uma das artistas programadas para se apresentar na manifestação. "Chegando, eu vi muitos jovens de preto, com aquelas camisas de bandas de rock, e pensei: 'Como é que será que vão receber a Odette?'. E aí ela subiu com a flauta dela, acompanhada do filho Jaime ao violão, e começou tocando as Bachianas Brasileiras 5 de Villa-Lobos, uma música que, no início, tem uma nota longa, como a onda de uma bomba atômica", detalhou Sérgio.

"Aquele som foi percorrendo a praça, e, em poucos instantes, estava todo mundo parado, em silêncio, observando a Odette tocar com o Jaime, e a gente só ouvia os pássaros, a flauta e o violão", relatou. "Eu fiquei impressionado com aquilo, com a presença de palco, a energia e a atitude dela, que, com uma flauta na mão, conseguiu encantar todo mundo e deixar todo mundo paralisado observando ela tocar", finalizou o presidente da Abraf.

Ao chegar à cidade em 1974, convidada pela Universidade de Brasília (UnB) para ser professora do Departamento de Música da instituição, a flautista Odette Ernest Dias havia deixado a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB). Vinha do Rio de Janeiro, onde, logo depois de desembarcar, em 1952, apaixonou-se pelo choro e passou a conviver com mestres como Heitor Villa-Lobos, Pixinguinha e Radamés Gnattali.

Conheci Odette em 1977, ano em que, no apartamento da 311 Sul, tiveram início as históricas rodas de choro, responsáveis pelo surgimento do Clube do Choro. Naquele endereço, a musicista recebia, nas tardes de sábado, chorões da importância de Bise da Flauta, Tio João, Tio Nilo, Alencar Sete Cordas,Pernambuco do Pandeiro e o consagrado Waldir Azevedo, que havia migrado do Rio para a capital federal.

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Fã de Odette, à época a aplaudi em shows no Teatro Galpão, no Teatro da Escola Parque, nas salas Villa-Lobos e Martins Penna do Teatro Nacional Cláudio Santoro. Acabei me tornando amigo dela, do marido, Geraldo Dias, e dos filhos Jaime, Beth e Andrea, igualmente músicos talentosos. Com o casal, me encontrava bastante no Beirute. Lá, entre chopes e quibes, conversávamos basicamente sobre música. Aliás, foi no mítico bar da 109 Sul que, apadrinhado pela flautista, me tornei sócio do Clube do Choro ao assinar a ata de criação da entidade.

Fiz várias entrevistas com a mestra da flauta, publicadas no Correio. Essas matérias focalizavam o lançamento de discos, resultado de pesquisas feitas por ela e, obviamente, shows e recitais que protagonizou. Em um deles, no teatro da Caixa Cultural, celebrou os 80 anos ao reverenciar Villa-Lobos, na passagem do cinquentenário de falecimento do maestro. Em 2012, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, a instrumentista recebeu o título de Cidadã Honorária de Brasília, proposto pela deputada Arlete Sampaio (PT). 

 


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