
Nem só de rabiscos táticos à beira do campo vivem os técnicos de futebol. As setas das pranchetas também apontam para estratégias políticas nas esferas pública e privada em defesa dos interesses profissionais. As movimentações ganham força no Congresso Nacional e serão debatidas na terça-feira em um fórum na sede da CBF, no Rio, com as presenças do presidente Samir Xaud e de Carlo Ancelotti.
Dos 20 clubes da Série A, 14 trocaram de técnico. Palmeiras, Flamengo, Cruzeiro, Mirassol, Bahia e Ceará resistem às 21 mudanças até a 30ª rodada. Tratados como produtos descartáveis, os donos de prancheta são representados pela Federação Brasileira de Treinadores de Futebol. A entidade esteve na Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados na última terça discutindo a valorização e as condições de trabalho da categoria. A causa dos técnicos é apadrinhada pelos parlamentares Luísa Canziani (PSD-PR) e Orlando Silva (PCdoB-SP).
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Recém-contratado pelo Red Bull Bragantino, Vagner Mancini representou a classe na Câmara e listou as queixas. "Estamos fragilizados. Perdemos o mercado internacional por uma manobra da Uefa. A entidade europeia passou a exigir uma licença que não tínhamos à época. Perdemos mercado no Brasil com a vinda dos estrangeiros, o que impactou nos últimos 10 anos", diz o presidente da FBTF.
Antes das restrições, Vanderlei Luxemburgo trabalhou no Real Madrid. A seleção de Portugal e o Chelsea contrataram Luiz Felipe Scolari. Zico comandou o Fenerbahçe da Turquia. Abel Braga comandou o Olympique de Marselha. Bordeaux e Monaco apostaram em Ricardo Gomes. Paulo Autuori escalou o tradicional Benfica.
A Europa se fechou, e o mercado brasileiro está aberto a profissionais importados. A Série A tem nove técnicos estrangeiros: seis argentinos, dois portugueses e um italiano. Diante disso, profissionais nascidos no país desbravam destinos alternativos. Tiago Nunes trabalha na LDU do Equador. André Jardine é amado no América do México. Sylvinho levou a Albânia à Euro e pode classificá-la à Copa do Mundo, depois de uma passagem frustrada pelo Lyon da França e da impaciência do Corinthians.
A pauta dos técnicos é extensa. Vai além da reserva de mercado. Líder da associação, Vagner Mancini cobra, por exemplo, direitos de arena. "O técnico participa das partidas, é obrigado a dar entrevistas, aparece constantemente durante o jogo, mas não está recebendo", lamenta. Assessor especial da presidência da FBFT, o técnico Alfredo Sampaio endossa: "É uma conquista que os atletas têm, e o treinador também deve ser contemplado".
Os jogadores desfrutam de 5% de direito de arena. Uma das ideias foi retirar 1% deles e repassá-los aos árbitros e aos técnicos: 0,5% para cada. A defesa dos atletas recusou, alegando ser um direito adquirido. Proibido de ser alterado.
Em 2021, a CBF limitou as trocas de técnico. Mesmo assim, houve 24 alterações. Clubes e técnicos anunciavam o rompimento do contrato alegando "comum acordo". Desmoralizada, a "lei" caiu em 2022.
A FBFT cobra a aplicação do tempo mínimo de acordo. "O contrato deveria ser de, pelo menos, 180 dias, para que o treinador tenha a possibilidade de planejamento e evite demissões precoces", cobra Vagner Mancini. "Tenho companheiros de profissão demitidos com três jogos. Você muda a vida, transfere escola dos filhos, a família e perde o emprego", testemunha o emocionado Alfredo Sampaio.
Os técnicos querem cadeira no STJD. "É fundamental a presença de um representante dos treinadores. Os clubes, atletas, árbitros, federações e a OAB são representados", compara Vagner Mancini. "Isso é crucial, porque o treinador está muito exposto e sujeito a punições", reforça Alfredo Sampaio.
Afastado da profissão para cuidar da saúde mental, Tite, ex-Seleção e Flamengo, foi citado indiretamente. "Há grande pressão sobre o treinador, 24 horas por dia. É necessário que haja preocupação para que os psicólogos dos clubes os atendam, e não apenas aos atletas", adverte o profissional.
A pauta acrescenta o escanteamento de profissionais por idade. "Gostaria que o parlamento brasileiro analisasse a possibilidade de o etarismo ser considerado crime. Não pode um treinador ser punido e tirado do mercado por força da idade. Os treinadores mais experientes estão sendo rotulados de ultrapassados e velhos. Jovens, como Zé Ricardo e Mauricio Barbieri estão perdendo espaço para estrangeiros e preteridos em outros países", combate Alfredo Sampaio.
Inspiração portuguesa
Portugal é apontado como modelo de formação. Quatro das últimas sete edições da Libertadores foram conquistadas por técnicos do país ibérico: Jorge Jesus (2019), Abel Ferreira (2020 e 2021) e Artur Jorge (2024). Eles também conquistaram o Brasileirão.
Alfredo Sampaio esteve na Associação de Treinadores de Portugal. "Pude ver o quanto eles se desenvolveram. Muitos treinadores do nosso país são oriundos do campo (ex-jogadores) ou do curso de educação física. Só que a faculdade tem, em quatro anos, 40 horas aula de futebol. Você pode fazer uma especialização depois. Em Portugal, são dois anos de formação e mais seis meses de estágio. Você ainda sai com as licenças C e B da Uefa. Depois, faz os licenciamentos A e Pro por mais dois anos", conta Sampaio, antes de apresentar um contraponto.
"Hoje, nós temos no Brasil cursos como o do Sindicato de São Paulo (Sitrefesp), pioneiro na capacitação; ou os da CBF, que são importantes, mas duram 15 dias. A gente não consegue formar. Temos que avançar na mudança da formação dos nossos técnicos e até mesmo na criação de universidades específicas para treinadores, como há em Portugal. Temos dois caminhos: institucional, em parceria com a CBF, ou por meio de lei", recomenta Alfredo Sampaio.

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