A realeza africana tem lugar no Brasil contemporâneo, e as décadas de luta dos movimentos sociais para alcançar essa visibilidade e começar a constituir políticas de reparação têm mostrado resultado. É isso o que comprova o trabalho de Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, 65 anos, geógrafo baiano que se tornou o primeiro titular negro fora do processo de transposição da Universidade de Brasília (UnB). A partir de gráficos e da pesquisa histórica, ele revela territorialidades do Brasil africano que ajudam a contar a história do país sob a ótica da identidade e do pertencimento.
Rafael nasceu no município de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo baiano, um dos cinco filhos de José Tibúrcio e Tieta. O pai, formado em Salvador, onde conheceu a mulher, foi o primeiro dentista da cidade do interior. Maria Clemência, José Ângelo, Rafael, Maria Luísa e José Filho são os cinco filhos do casal.
Tieta era professora de português e apaixonada por arte. Folheava à exaustão o livro Os titãs da pintura. O sonho era que o primeiro filho homem se chamasse Michelângelo, em homenagem ao célebre artista italiano, mas Tibúrcio a convenceu e ela concordou com uma adaptação. Um ano depois do nascimento de José Ângelo, era a hora de fazer a homenagem completa e batizar Rafael Sanzio, em referência a outro mestre da pintura e arquitetura renascentista italiano. "Só que sem o 'ph'", diverte-se Rafael.
Quando ele chegou aos 6 anos de idade, a mãe começou a levá-lo para conhecer um pouco da história da cidade onde moravam e do passado escravagista da região e do país. As visitas às fazendas coloniais do Recôncavo ainda são vivas na memória do professor. "Eu vi Casagrande, eu vi Senzala, eu vi correntes. Estava lá, não tinha questionamento", reforça. "Nosso cérebro é uma câmera fotográfica. Então, eu gravei. Meu link com essa matriz da geografia brasileira começa aí. Começa com Tieta me dizendo: 'Olha, esse mundo existe'. Minha mãe me disse isso."
O encontro com a metrópole, Salvador, também o ajudou a montar esse quebra-cabeças. Rafael tinha um problema de visão e precisava fazer viagens à capital de tempos em tempos para acompanhar o tratamento com especialistas. "Quando eu fui depois, adolescente, estudar lá, já conhecia Salvador, estava tranquilo", recorda-se. "E aí eu vi o quê? Essa Salvador africana, essa Salvador da feira, do comércio, do serviço, da base. Eu vi a cidade como ela era: sem maquiagem."
Pesquisa e memória
É em nome dessa memória e de outros princípios fundamentais que cultiva que ele trabalha desde a década de 1980 com estudos de cartografia integrados ao movimento negro, como uma forma de deixar legado semelhante para os filhos, Izabella, Tarcila e Victor, e o neto, Qizai.
Rafael afirma que essa foi a matriz da geografia de sua história de vida e, consequentemente, da carreira que escolheu seguir, um percurso desenhado desde a infância e adolescência.
O desenho, inclusive, sempre foi uma paixão. À época, o ensino médio era integrado ao técnico e havia algumas trajetórias formativas disponíveis para escolha do estudante. Essa foi a que Rafael escolheu. Entre o desenho topográfico, o arquitetônico, o publicitário e outros mais, os dois primeiros o encantavam. No momento de optar pelo curso para o vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o coração ainda balançava como uma gangorra entre duas opções: a arquitetura e a geografia.
Um passeio pelo câmpus da instituição com o tio Antônio, irmão de seu pai, contribuiu para definir o destino que começava, então, a tomar contornos mais definitivos. "Eu quero aprender a fazer mapas", decidiu-se o jovem Rafael.
"O curso de geografia tinha qualidade, mas eu andava por Salvador, pelos vales, olhava para um lado e para o outro, de bicicleta ou andando, e eu via aquela cidade preta. Quem mora no morro? O morro tem uma matriz étnica dominante. Que geografia é essa? Quem estuda essa geografia? Onde essa geografia tem lugar na geografia oficial? Não tinha", inquieta-se.
Daí nasce a semente do projeto Geoafro, hoje desenvolvido em parceria com o Instituto káwò, do qual é fundador. O objetivo é mostrar uma geografia real da urbanização brasileira, "que é a geografia da exclusão", conforme destaca o professor. "E essa exclusão tem uma matriz étnica dominante. Geralmente ela é negra. Isso está em qualquer lugar do Brasil."
O projeto de conclusão de curso na UFBA traz esse olhar, mas não é ali ainda que Rafael vai seguir a carreira acadêmica. A vontade de desenhar mapas o levou a trabalhar na Coelba — empresa distribuidora de energia local — após a graduação, fazendo mapas termoelétricos da Bahia. "Ali eu vi a Bahia toda, como circula a energia. As pessoas gostavam do meu traço", orgulha-se. Ao mesmo tempo, atuava na revisão do Plano Diretor do Polo Petroquímico de Camaçari, um dos polos industriais do Nordeste, e em seguida é convidado a trabalhar no Projeto das Cidades Médias do Brasil, quando participou de um análise topográfica para entender a dinâmica das enchentes do Rio São Francisco.
Energia professoral
A vivência em casa, de uma família de mulheres professoras, o ajudou a construir a vontade de lecionar. "Eu via essa energia professoral em casa. Quando minhas tias chegavam para visitar minha mãe, a casa virava delas", relata. Mas foi anos mais tarde, em Petrolina, quando dava aulas à noite em um curso de universitário de formação de professores, que o caminho ficou mais evidente.
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Diante de uma sala cheia de adultos, a maioria mais velhos do que ele, viu-se com um desafio: que ninguém caísse no sono. Decidiu, então, contar sobre o trabalho que desenvolvia durante o dia, de prevenção de enchentes. "A pesquisa tinha uma proposta de trazer soluções alternativas de esgoto, com coleta no final das casas, em umas caixinhas que passariam pelo fundo do quintal. Ou seja, todo mundo tinha que cuidar para a caixa não entupir. Eles adoraram e ninguém dormiu", alegra-se.
"Então eu pedi as contas — foi o melhor salário que tive — e fui fazer o mestrado", revela Rafael. Sob protestos da mãe e com o incentivo do pai, ele se inscreveu na seleção do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB) e foi aceito. "Não era para você ser professor", reclamava a mãe, sem sucesso. "Eu já sou", respondia Rafael, prestes a embarcar para o Planalto Central. "Eu acredito bem nisso, e continuo acreditando: a arte e a educação são duas portas concretas para transformar."
O digital e a tradição
O doutorado, Rafael cursou na Poli, da Universidade de São Paulo (USP), na área de geoprocessamento. Em 2015, o professor Rafael Sanzio tornou-se o primeiro titular negro fora do processo de reposicionamento. Outros pioneiros da UnB foram Bergmann Ribeiro, Fernando de Oliveira, Florêncio Figueiredo, Cavalcanti Neto, Jorge Ribeiro, José da Costa, Juvenil Cares e Rogerio Lima, que, em março de 2013, foram titulados por meio do processo de transposição de carreira. "Importante ressaltar que não houve distinção quanto à raça nesse processo. As promoções seguiram os trâmites regulares, sem que a etnia fosse fator determinante. Assim, embora existam titulares anteriores, eles ascenderam ao cargo por meio da transposição de carreira, conforme estabelecido em lei em março de 2013", informa a UnB, em nota. Entre as mulheres negras titulares, Maria Abadia da Silva e Dione Moura são as pioneiras, tituladas em março de 2020 e de 2022, respectivamente.
O projeto Geoafro adiantou os principais aspectos da inteligência artificial tão popular na atualidade, respondendo a perguntas sobre o Brasil africano em uma plataforma digital. O professor mapeou todas as principais conquistas do movimento negro nos últimos 70 anos, desde os primeiros movimentos sociais no Sul do país até a decretação do feriado nacional para celebrar o Dia da Consciência Negra. "Isso é geografia automatizada. Isso é ordenamento do território conectado com populações invisibilizadas secularmente", descreve o professor. "São territorialidades. E quando estou falando em territorialidade, estou falando de identidade, de pertencimento."
O resultado, visível nos mapas e que Rafael acompanhou ao longo da trajetória acadêmica, é uma mudança expressiva, tanto de participação dessa população quanto de visibilidade aos problemas que emergem do racismo. "Hoje, sentamos em uma mesa de decisões e o Brasil africano tem um lugar. Isso já está colocado, mas foi uma construção. Hoje, a Universidade de Brasília para no mês de novembro. Eu sou da geração que construiu esse caminho", detalha.
Veja os mapas sobre o movimento negro no Brasil:
Estudo da diáspora
As portas se estenderam quando, numa viagem quase que por acaso à Bélgica, Rafael conheceu o Museu Real da África Central. A epifania causada por esse encontro causou uma inquietude tão grande que o professor voltou, pouco tempo depois, para se debruçar por uma semana inteira no arquivo histórico da instituição.
"Vi os mapas do século 16, vi as fotografias do século 19, vi o acervo geográfico, cartográfico, fantásticos, do período da dominação belga do século 19. Quem tinha ido lá era Yeda Castro, a linguista, 30 anos antes. Então, depois de 30 anos, volto eu, outro brasileiro, para mexer nessas referências geográficas, cartográficas da diáspora África-Brasil", detalha. E não parou por aí: conseguiu ser contemplado com uma bolsa de pós-doutorado no país europeu para estudar o fenômeno. A pesquisa incluiu uma temporada no Congo e em Angola.
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Um mundo de (re)descobertas se abre nesse momento para Rafael. Os mapas do continente africano dos séculos passados revelam vários antigos reinos, chefarias e idiomas. "Era uma realeza que vinha para cá", desvela o professor. "As línguas bantu ajudaram o nosso português, o português de Portugal, a ficar mais macio, e de maneira brilhante. O negro virou 'meu nego',' minha nega'. Aliviou a carga da violência. Então, as línguas africanas amaciaram o nosso português, por isso que aqui é único. As línguas indígenas, também."
Hoje, além de professor da Pós-Graduação na UnB, dá aulas como docente convidado na UFBA e segue na pesquisa no Instituto Káwò, seguindo a orientação que recebeu, anos atrás, do geógrafo negro Milton Santos, referência no país: "Vai dar certo! Siga em frente".
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