Diplomacia

Donald Trump ataca as Nações Unidas e faz afagos ao próprio ego

Durante discurso no primeiro dia da Assembleia Geral, em Nova York, Donald Trump desqualifica as Nações Unidas, atribui a si mesmo a façanha de ter encerrado sete guerras, adverte países europeus e nega a existência de mudanças climáticas

Donald Trump discursa no púlpito da Assembleia Geral da ONU, em Nova York  -  (crédito: Timotht A. Clary/AFP)
Donald Trump discursa no púlpito da Assembleia Geral da ONU, em Nova York - (crédito: Timotht A. Clary/AFP)

As ofensas às Nações Unidas começaram com críticas ao não funcionamento das escadas rolantes da sede, em Nova York, e do teleprompter, o que teria levado o presidente dos Estados Unidos a improvisar a retórica por várias vezes. "Isso é tudo o que consegui da ONU", ironizou. O porta-voz das Nações Unidas garantiu que a responsabilidade pela operação do teleprompter era da própria Casa Branca e anunciou uma investigação sobre o defeito nas escadas rolantes. Segundo líder a discursar no primeiro dia da Assembleia Geral, depois de Luiz Inácio Lula da Silva, Donald Trump atacou o multilateralismo, colocou em xeque o papel da ONU, minimizou as mudanças climáticas, criticou a Europa por permitir a entrada de imigrantes, prometeu "explodir" os cartéis do narcotráfico e se promoveu como o único governante a acabar com sete guerras no planeta.

"Qual é o propósito das Nações Unidas? A ONU tem um potencial tremendo... Tudo o que eles parecem fazer é escrever uma carta com palavras muito fortes e nunca dar seguimento a ela. São palavras vazias — e palavras vazias não resolvem guerras", declarou o republicano. "A ONU tem um potencial tremendo. Eu sempre disse isso. Mas sequer chega perto de estar à altura dele", acrescentou. 

Durante o pronunciamento de 55 minutos, 40 a mais do que o planejado, Trump aproveitou para falar à base conservadora republicana e para fazer afagos a si mesmo. "Em um período de apenas sete meses, acabei com sete guerras infindáveis... Nenhum presidente ou primeiro-ministro — e, aliás, nenhum outro país — jamais fez algo parecido, e eu fiz isso em apenas sete meses", disse o americano, ao citar os conflitos entre Camboja e Tailândia; Kosovo e Sérvia; República Democrática do Congo e Ruanda; Índia e Paquistão; Israel e Irã; Egito e Etiópia; e Armênia e Azerbaijão. "Eu tive que fazer essas coisas, ao invés da ONU", alfinetou, ao acusar as Nações Unidas de "nem sequer tentarem ajudar" para pôr fim a esses conflitos. 

Em relação à Venezuela, enviou um recado aos cartéis do narcotráfico, ao defender os ataques a embarcações no Mar do Caribe. "A todo terrorista bandido que esteja traficando drogas venenosas para os Estados Unidos da América: estejam avisados, faremos vocês explodirem", avisou. Trump ressaltou que as drogas enviadas aos EUA têm matado "centenas de milhares de americanos" e culpou diretamente o presidente da venezuelano. "Recentemente, começamos a usar o poder supremo militar para destruir as redes do tráfico venezuelanas lideradas por Nicolás Maduro."

Doutora em ciência política e professora de relações internacionais na ESPM, Denilde Holzhacker admitiu ao Correio que os Estados Unidos tiveram papel decisivo em alguns dos acordos para mediar conflitos. "Eu não diria que, em alguns deles, se chegou a um acordo de paz. A crise entre Armênia e Azerbaijão, que Trump coloca na conta como resolvida, tem apresentado continuidade do conflito. De fato, os EUA tiveram um papel importante na disputa entre Irã e Israel, mas depois de 12 dias de muita tensão, houve um cessar-fogo, mas não um acordo de paz. Uma trégua entre Índia e Paquistão foi alcançada, a qual a diplomacia indiana reivindica para si", explicou. "Houve um peso dos EUA nas negociações com esses países, mas também da própria dinâmica internacional. Trump tem se colocado como um grande pacificador e negociador e que, por isso, deveria ser reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz. Isso tornou-se quase que uma obsessão para ele."

Ainda segundo Holzhacker, o pronunciamento de Trump foi pautado por muita desinformação e pela espontaneidade. "Ele adotou argumentos importantes para o público interno, mas também recados importantes para a ONU sobre o papel da instituição no mundo. Fez críticas muito contundentes à incapacidade das Nações Unidas de resolverem situações de conflito", disse a especialista. 

"Na prática, o que Trump conseguiu fazer foi avançar algumas negociações nos cenários de guerra mencionados por ele. Mas terminar com as guerras, no sentido de interromper os conflitos, com acordos de paz duradouros, não são o caso", afirmou ao Correio Cristina Soreanu Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "A questão é que Trump tentou colocar, em seu discurso, a meta de ganhar o Nobel da Paz. Essa narrativa busca reforçar essa posição", observou. No púlpito da Assembleia Geral, o republicano falou abertamente sobre essa possibilidade. "Todos dizem que eu deveria ganhar o Prêmio Nobel da Paz… Mas, para mim, o verdadeiro prêmio serão os filhos e filhas que viverão para crescer com suas mães e pais, porque milhões de pessoas não estão mais sendo mortas em guerras intermináveis e sem glória. O que me importa não é ganhar prêmios, mas salvar vidas."

Clima e imigração

O titular da Casa Branca dedicou ao menos 10 minutos de seu pronunciamento ao que chamou de "fraude" do aquecimento global e à defesa dos combustíveis fósseis. "A mudança climática é, na minha opinião, o maior golpe perpetrado no mundo", afirmou, sem apresentar provas. "A pegada de carbono é uma farsa inventada por pessoas com más intenções."

Holzhacker lembrou que Trump acusou o governo da China de não utilizar energia eólica, e, mesmo assim, de vendê-la para o mundo. "Isso não é verdade. Trump também disse que os EUA têm ar limpo e que a poluição de outras nações chega ao território americano por meio dos mares." 

Ao abordar o tema da imigração ilegal, Trump disse que os países da Europa "estão indo para o inferno" por permitirem a entrada de estrangeiros não documentados. De acordo com o americano, a ONU incentiva o fenômeno e "não está à altura" de solucioná-lo. "É hora de pôr fim à experiência fracassada das fronteiras abertas", cobrou, ao usar o exemplo americano — ainda que contestado por especialistas. "Por quatro meses consecutivos, o número de imigrantes ilegais admitidos e entrando em nosso país foi zero… Nossa mensagem é muito simples: se você entrar ilegalmente nos Estados Unidos, você irá para a cadeia ou voltará para o lugar de onde veio", anunciou o republicano.

EU ACHO...

Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM:
Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM (foto: Arquivo pessoal )

"O discurso de Trump teve situações bem exageradas. Ele considerou que os índices econômicos, quando comparados aos do governo de Joe Biden, são muito melhores. No campo da imigração, Trump alegou que houve zero entrada de estrangeiros não documentados. De fato, houve uma queda muito drástica nas entradas ilegais em relação à gestão Biden. O controle da fronteira teve efeito, mas não chegou à zero entrada. Em relação à criminalidade, o presidente disse que a capital Washington vivia uma situação caótica, tornarndo-se a cidade mais insegura dos EUA. Os dados não comprovam isso."

Denilde Holzhacker, doutora em ciência política e professora de relações internacionais na ESPM 

Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo
Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (foto: Arquivo pessoal)

"O discurso de Trump se sustentou em técnicas conhecidas do presidente americano: misturar fatos reais com agendas que são dificilmente comprovadas na realidade, mas que satisfazem seu público e são teses que surgem como verdadeiras para a extrema direita. As temáticas ambiental e migratória enquadram-se nessa avaliação. Foi um discurso que esteve recheado disso. Trump é consistente em seu unilateralismo e nos ataques à Organização das Nações Unidas. O que ele fez foi instrumentalizar um espaço de cooperação e de debate, para criticar a governança multilateral."

Cristina Soreanu Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

 

Eu acho...

"O discurso de Trump teve situações bem exageradas. Ele considerou que os índices econômicos, quando comparados aos do governo de Joe Biden, são muito melhores. No campo da imigração, Trump alegou que houve zero entrada de estrangeiros não documentados. De fato, houve uma queda muito drástica nas entradas ilegais em relação à gestão Biden. O controle da fronteira teve efeito, mas não chegou à zero entrada. Em relação à criminalidade, o presidente disse que a capital Washington vivia uma situação caótica, tornarndo-se a cidade mais insegura dos EUA. Os dados não comprovam isso."

Denilde Holzhacker, doutora em ciência política e professora de relações internacionais na ESPM 

"O discurso de Trump se sustentou em técnicas conhecidas do presidente americano: misturar fatos reais com agendas que são dificilmente comprovadas na realidade, mas que satisfazem seu público e são teses que surgem como verdadeiras para a extrema direita. As temáticas ambiental e migratória enquadram-se nessa avaliação. Foi um discurso que esteve recheado disso. Trump é consistente em seu unilateralismo e nos ataques à Organização das Nações Unidas. O que ele fez foi instrumentalizar um espaço de cooperação e de debate, para criticar a governança multilateral."

Cristina Soreanu Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Aceno à derrubada de aviões russos pela Otan

A reunião bilateral entre os presidentes Donald Trump (EUA) e Volodymyr Zelensky (Ucrânia), à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas, teve dois momentos que surpreenderam até mesmo Kiev. O anfitrião admitiu que os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) devem abater os aviões russos que violarem seu espaço aéreo. "Sim, acredito", respondeu Trump quando um jornalista lhe perguntou se ele acredita que os membros da aliança militar ocidental devem derrubar os caças de Moscou que invadirem o território. Nas últimas semanas, a tensão entre a Otan e a Rússia aumentou depois que diversos caças e drones de Moscou foram detectados sobrevoando o espaço aéreo de países, como Polônia e Estônia.

Outro momento 

 

  • Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM: "Cenário aponta para menor resistência às mudanças prometidas em campanha"
    Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM Foto: Arquivo pessoal
  • Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo
    Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo Foto: Arquivo pessoal
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postado em 24/09/2025 05:50
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