ARTIGO

Uma casa para Athos

Dar uma sede à Fundação Athos Bulcão é dar continuidade à missão de que arte e arquitetura são inseparáveis e que, juntas, constroem a memória de um lugar

Ricardo Reis Meira. Mestre em teoria e história da arquitetura e presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal
 -  (crédito: Arquivo pessoal )
Ricardo Reis Meira. Mestre em teoria e história da arquitetura e presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal - (crédito: Arquivo pessoal )

Por Ricardo Reis Meira* — Toda obra de Athos Bulcão é uma aula. Não daquelas tradicionais, embora sua arte esteja até nos currículos escolares, mas porque nos ensina a olhar para a cidade com outra lente. Ela nos ensina que o concreto não precisa ser duro, que a arquitetura pode ter alma, que as paredes podem dançar.

Athos, carioca de nascimento, escolheu Brasília como quem escolhe uma segunda chance de existir. E nos deu, de presente, uma nova chance de sentir. Seus azulejos, suas sombras, suas cores e formas espalhadas por hospitais, igrejas, escolas, casas, praças e monumentos transformaram a capital de linhas retas em palco de poesia. Ele nos provou que arte não tem que ficar trancada em museu: pode habitar o cotidiano, estar ao alcance de todos os olhares e de todas as mãos.

Pois é curioso que quem nos ensinou tanto sobre pertencimento ainda não tivesse um espaço próprio para chamar de seu. A Fundação Athos Bulcão, guardiã desse acervo, existe desde 1992, mas sem sede definitiva. Sobreviveu em espaços improvisados, levando adiante a missão de preservar, ensinar, emocionar, sem nunca ter o chão firme que Athos tanto merecia.

Agora, enfim, parece que a justiça será feita. O Governo do Distrito Federal concedeu o terreno para a construção da nova sede da Fundação, em um gesto que é mais do que burocrático: é simbólico. É quase como se Brasília dissesse "obrigado" a quem ajudou a desenhar a alma desta cidade.

O projeto, assinado pelo João Filgueiras Lima, o Lelé, outro gênio, promete ser mais que um edifício: será um convite para entrar na cabeça de Athos, sentir a música que ele via nos azulejos, caminhar pelos labirintos geométricos que ele imaginava, descobrir a liberdade que existe em cada repetição. Museu, salas multiuso, jardim, café: tudo pensado para que a obra de Athos continue a ser viva, próxima, respirando junto com a cidade.

Porque a arte de Athos nunca foi estática. Mesmo quando assentada no concreto, ela se move, muda com a luz do dia, conversa com quem passa, consola quem espera numa fila de hospital, encanta crianças em escolas públicas. São mais de 260 obras espalhadas por Brasília, não por acaso. Athos sempre acreditou que beleza é direito de todos, não privilégio de poucos.

Dar uma sede à Fundação Athos Bulcão não é só erguer um prédio. É garantir que essa filosofia siga viva, inspirando gerações, formando mentes, tocando corações. É dar continuidade a uma missão que ele mesmo começou lá atrás, quando entendeu que arte e arquitetura são inseparáveis e que, juntas, constroem a memória de um lugar.

Brasília deve muito a Athos. O Parque da Cidade, o Teatro Nacional, os murais das escolas, os relevos dos hospitais, as sombras dançantes nos blocos de concreto. Tudo isso se confunde com a própria história de quem mora aqui. É impossível passar por Brasília sem esbarrar na poesia que Athos imprimiu nos muros e paredes.

Por isso, é hora de retribuir. É hora de dar à Fundação o teto que faltava, o abrigo que Athos jamais pediu, mas sempre mereceu. Porque artista nenhum se faz sozinho, e legado nenhum se preserva sem cuidado. A nova sede será um marco, sim, mas também um gesto de responsabilidade coletiva: reconhecer que cultura é patrimônio, que memória é bem público, e que artistas como Athos não podem ficar à mercê de favores, empréstimos ou improvisos.

Se a arte humaniza a arquitetura, como Athos dizia, então a nova sede humaniza a cidade mais uma vez. É uma espécie de abraço tardio, mas ainda a tempo, da capital a um de seus candangos mais queridos. Que esse espaço floresça, se encha de crianças, visitantes, curiosos, estudiosos, todos aqueles que queiram aprender a ver o mundo com menos rigidez e mais leveza.

Athos merece uma casa. E Brasília, no fundo, também.

Mestre em teoria e história da arquitetura e presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal*

 

Por Opinião
postado em 06/07/2025 06:00 / atualizado em 06/07/2025 09:25
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