
Na encenação das tragédias gregas, havia um recurso polêmico conhecido como deus ex-machina. O artifício permitia que, no fim da peça, diante de um problema de difícil solução, um ator vestido de divindade descesse por uma grua e desse uma solução completamente arbitrária, encerrando o impasse do personagem. Grande admirador do gênero trágico, o filósofo Aristóteles, porém, desprezava essa técnica. Em sua Poética, espécie de "manual" sobre a arte da narrativa, ele determina: "Nada deve haver de irracional nos acontecimentos dramáticos".
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Escrita no século 4 a.C. e ainda atualíssima, a obra aristotélica é (ou deveria ser) obrigatória para quem se atreve a contar histórias. É uma espécie de tratado — muito acessível, por sinal — da produção literária, e, se tem uma coisa que o tempo não muda, é que, para agradar ao leitor ou ao espectador, um enredo tem de ser muito bem cerzido.
Coincidentemente, enquanto aguardava o final de Vale Tudo, eu estava relendo alguns trechos da Poética. Quando, na última cena, aparece Odete Roitman vivinha da Silva (numa explicação do ocorrido digna dos desfechos do Scooby-Doo), fiquei esperando descer do céu uma divindade grega: "Como já estava queimada com a família e na TCA, a Odete aproveita um tiro dado por Marco Aurélio e, sem pestanejar, forja a própria morte com a ajuda do Freitas. Fim.".
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Acompanhei pouquíssimo essa versão da novela e boa parte do que vi foi por vídeos postados no Instagram. Embora a morte de Odete não tenha despertado 10% da comoção de 1988/1989, eu estava curiosa para saber como a escritora Manuela Dias e sua equipe resolveriam o grande mistério da trama. Originalmente, Marco Aurélio mataria Odete, mas a informação vazou na imprensa e o autor Gilberto Braga encontrou uma forma de surpreender os espectadores sem, contudo, inserir algo "irracional" na trama, como aconselhava Aristóteles.
Na Poética, o filósofo lembra que, nas encenações das tragédias gregas, tão populares na época quanto hoje são os folhetins televisivos, muitas vezes o espectador já chegava ao teatro sabendo o fim da história. Embora não fosse regra, a maioria das peças do gênero narrava conhecidos episódios da mitologia. Porém, o fato de, assim como Vale Tudo, Édipo Rei ser um, digamos, remake, não tirou a grandeza do texto de Sófocles. A construção da história, mais do que a surpresa (ou não) do final, era o que justificava sair de casa para assisti-la.
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Uma boa história, defendia Aristóteles, devia ser capaz de produzir compaixão e pavor no espectador que, então, se purificava com a obra (a famosa catarse). Sem respeito nenhum ao público, que dedicou o que temos de mais precioso nesses tempos acelerados — o tempo — à sua obra, os roteiristas de Vale Tudo só conseguiram despertar um sentimento: o de raiva.

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