ARTIGO

A política do cansaço

A Argentina de longas tradições partidárias e lideranças carismáticas experimenta, agora, a política da exaustão: um governo que nasce do cansaço e governa pela negação do que veio antes

Opiniao 2810 -  (crédito: Caio Gomez)
Opiniao 2810 - (crédito: Caio Gomez)

GUILHERME FRIZZERA, doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília (IREL/UnB), coordenador do curso de relações internacionais na Uninter

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A vitória do La Libertad Avanza (LLA) nas eleições legislativas argentinas redesenha o equilíbrio de forças em Buenos Aires e condiciona o governo de Javier Milei para os próximos dois anos. O resultado surpreendeu muitos analistas, mas não deve ser interpretado como um endosso amplo às políticas presidenciais. Ele reflete, antes, o desgaste da população diante do sistema político e da fragmentação dos partidos tradicionais. O voto não foi tanto um sinal de adesão quanto uma expressão de desconfiança em relação às alternativas disponíveis.

No Congresso, o avanço do LLA aumenta a capacidade de negociação do governo, fortalecendo a margem para aprovar projetos e criando uma base mais sólida para transformar decretos em decisões com respaldo parlamentar. O fator decisivo, porém, foi a desorganização da oposição. O peronismo, sem uma liderança consolidada, falhou em unir suas forças. Como apontam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores da Faculdade de Governo e Ciência Política da Universidade Harvard e autores do best-seller Como as democracias morrem, para que líderes outsiders sejam efetivamente contidos, é essencial que as forças democráticas se unam, permitindo a Milei operar sem um contraponto eficaz. Figuras provinciais, como Axel Kicillof, permaneceram restritas às suas regiões e não conseguiram preencher o vácuo político nacional.

 Paralelamente, a abstenção atingiu o maior índice desde 1983, mostrando que os cidadãos não confirmaram apoio entusiástico a Milei, mas expressaram desinteresse e desconfiança com relação ao sistema. O presidente agora terá o desafio de transformar esse impulso, originado na falta de mobilização popular, em resultados concretos que sustentem seu projeto de reeleição e garantam estabilidade econômica.

No plano externo, a vitória legislativa consolida o alinhamento estratégico da Argentina com os EUA de Donald Trump. O governo passa a depender de vínculos estreitos com Washington para obter suporte financeiro e político, estabelecendo uma relação em que a estabilidade nacional se torna sensível às decisões externas. Ao mimetizar Trump, Milei rompeu relações diplomáticas com a Venezuela e reforçou sua postura ideológica alinhada ao presidente  norte-americano. Nesse cenário, o país não é apenas subordinado, mas torna-se um fator de desestabilização regional, capaz de complicar esforços diplomáticos, inclusive aqueles liderados pelo Brasil, que se ofereceu como mediador entre as tensões envolvendo a Venezuela e os EUA. 

Para o Brasil, os impactos do resultado das eleições legislativas na Argentina são imediatos e concretos. A consolidação de Milei compromete a coordenação do Mercosul e mantém uma certa distância entre Brasília e Buenos Aires. A agenda do bloco encontra-se em um momento decisivo, próximo de finalizar os acordos com a União Europeia, favorecendo em muitos aspectos o bloco europeu, mais do que as políticas bilaterais como, por exemplo, com os EUA. 

Internamente, o exemplo argentino oferece à oposição brasileira argumentos para advogar por políticas mais radicais, mesmo que a vitória de Milei tenha se dado por uma sociedade cansada e desencantada, e não por aprovação plena de seu modelo. O triunfo libertário servirá como referência retórica na defesa da desregulamentação econômica, dos cortes fiscais e no alinhamento ideológico que são apresentados como caminho para superar crises nacionais, sem que se considere que a vitória de Milei se apoiou mais na fragilidade do sistema do que em convicção cidadã.

O resultado argentino evidencia um padrão de governabilidade em torno de lacunas deixadas pela oposição e oportunidades criadas pela baixa mobilização social. Nos dois anos que restam de mandato, a chave será traduzir essa vantagem legislativa em medidas concretas que recuperem a sua popularidade e justifiquem uma eventual reeleição, sem que o apoio se transforme em instabilidade ou frustração social.

Mais do que uma vitória legislativa, o avanço do La Libertad Avanza marca uma inflexão na trajetória política argentina. O país de longas tradições partidárias e lideranças carismáticas experimenta, agora, a política da exaustão: um governo que nasce do cansaço e governa pela negação do que veio antes. Milei tenta transformar essa fadiga em projeto de nação, ao mesmo tempo em que se ancora em apoios externos e em narrativas importadas. O desafio argentino será reencontrar a própria voz, aquela que, entre crises recorrentes e promessas messiânicas, ainda busca um caminho entre o desencanto e a reconstrução.

 

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Por Opinião
postado em 28/10/2025 06:00
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