ARTIGO

Regulação em chave lusófona: convergências institucionais entre Brasil e Europa

O II Fórum Futuro da Regulação, em Lisboa, ocorre justamente quando o Brasil precisa escolher entre a oscilação normativa e a maturidade institucional que sua escala democrática exige

TCU adotou métodos de supervisão orientados a risco, intensificando o uso de dados e avaliações de políticas públicas -  (crédito:  Valter Campanato/Agência Brasil)
TCU adotou métodos de supervisão orientados a risco, intensificando o uso de dados e avaliações de políticas públicas - (crédito: Valter Campanato/Agência Brasil)

Bruno Dantasministro do Tribunal de Contas da União (TCU)

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Nenhuma nação disputa protagonismo global sem um sistema regulatório estável, previsível e intelectualmente sofisticado. É essa a lição que atravessa o Regulatory Policy Outlook 2021, os indicadores de governança de 2023 e a análise de incerteza regulatória de 2024. Países que negligenciam essa dimensão não perdem apenas eficiência: perdem autoridade, credibilidade e futuro. O II Fórum Futuro da Regulação, em Lisboa, ocorre justamente quando o Brasil precisa escolher entre a oscilação normativa e a maturidade institucional que sua escala democrática exige.

A regulação tornou-se o núcleo racional do Estado contemporâneo. Majone antecipou a ascensão do "Estado regulador", mas a velocidade tecnológica transformou essa previsão em urgência. Em sociedades movidas por fluxos digitais e cadeias globais, regular é conferir ordem ao que, de outro modo, seria instabilidade permanente. Sistemas regulatórios sólidos respondem melhor a crises e coordenam suas instituições com maior precisão.

O Brasil avançou com a Lei nº 13.848/2019 ao consolidar parâmetros de governança regulatória, mas ainda patina naquilo que distingue sistemas maduros de meras intenções normativas: a prática consistente da Análise de Impacto Regulatório (AIR).

Os dados são eloquentes. O relatório Regulação em Números, da FGV, examinou 1.415 atos normativos editados por agências reguladoras e constatou que apenas 17,8% deles foram precedidos de AIR. Em 82,2% dos casos, ou se deixou de utilizar essa ferramenta, ou se recorreu à prerrogativa de dispensa. A assimetria é clara: se a Constituição e a lei já delinearam o caminho, a cultura institucional ainda não se alinhou à exigência de fundamentação qualificada e transparência metodológica. Sem AIR, o processo regulatório perde densidade e reforça a vulnerabilidade do país à volatilidade normativa — justamente o oposto do que se espera de quem busca credibilidade internacional.

Nesse ambiente, as Cortes de Contas passaram a desempenhar papel decisivo. O Tribunal de Contas da União adotou métodos de supervisão orientados a risco, intensificando o uso de dados e avaliações de políticas públicas. Essa abordagem converge com as melhores práticas de cooperação regulatória, que recomendam coordenação horizontal para reduzir inconsistências, mitigar lacunas e reforçar a previsibilidade. Com isso, o TCU integra, de forma ativa, a arquitetura regulatória brasileira.

O cenário externo amplia esse desafio. Julia Black descreve a regulação contemporânea como policêntrica, produzida em múltiplos centros de autoridade que operam em níveis subnacionais, nacionais e transnacionais. Nesses arranjos descentralizados, normas e expectativas circulam para além das fronteiras estatais, moldando sistemas jurídicos mesmo sem participação formal dos países afetados. O Brasil, portanto, precisa posicionar-se com maturidade institucional em um ecossistema regulatório global que funciona como rede.

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O eixo lusófono oferece, nesse ponto, uma oportunidade singular. Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa podem constituir uma comunidade regulatória própria, capaz de articular boas práticas, produzir reciprocidades institucionais e promover um diálogo simétrico com a experiência europeia. Essa aproximação amplia a capacidade de construção de padrões comuns em infraestrutura, energia, portos, telecomunicações e tecnologia — e fortalece o peso regulatório do Brasil em debates internacionais.

Os dados reforçam essa convergência. Países com estabilidade regulatória apresentam melhor desempenho logístico, maior previsibilidade tarifária e maior atração de capital privado. Os efeitos são visíveis em setores como portos, energia e transporte aéreo, nos quais previsibilidade é condição de existência. Onde normas permanecem estáveis, investimentos florescem; onde se alteram de modo imprevisível, retraem.

Esses achados dialogam com reflexões teóricas centrais. Cass Sunstein enfatiza que a regulação inteligente exige métricas claras e revisão constante. Anthony Ogus e Baldwin, Cave & Lodge destacam que legitimidade regulatória depende de racionalidade técnica, coerência interna e abertura ao escrutínio público. E Mariana Mazzucato observa que Estados capazes de combinar estabilidade e inovação estruturam ciclos de desenvolvimento duradouros. Juntos, esses autores demonstram que qualidade regulatória é instrumento de autoridade democrática.

O Brasil precisa, assim, institucionalizar análises de impacto, revisar regularmente o estoque regulatório e fortalecer a coordenação entre agências, TCU e Judiciário. Em setores intensivos em capital — energia, saneamento, aviação e logística — previsibilidade não é virtude: é infraestrutura. Normas instáveis corroem confiança, distorcem preços e dificultam a inserção do país em cadeias globais de valor.

O Brasil vive, portanto, um momento em que deve dialogar com o mundo não para imitá-lo, mas para reconhecer-se nele como ator dotado de autoridade normativa. A interlocução com a Europa oferece a oportunidade rara de confrontar tradições, comparar métodos e aperfeiçoar instituições a partir de experiências plurais. A força desse diálogo reside na simetria intelectual, na troca qualificada e na ambição comum de estabilidade.

Lisboa torna-se o espaço em que o Brasil ouve, aprende e também ensina, afirmando sua maturidade institucional. O futuro de nossa regulação dependerá da profundidade com que soubermos habitar esse espaço de convergência — transformando o diálogo em método, e o método em política pública duradoura.

 

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Por Opinião
postado em 24/11/2025 06:01
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