ABORTO

O que diz o projeto que dificulta aborto em crianças vítimas de estupro

Texto aprovado na Câmara reacende embate entre proteção à infância, autonomia da vítima e limites da intervenção estatal

O que diz o projeto que dificulta aborto em crianças vítimas de estupro -  (crédito: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados)
O que diz o projeto que dificulta aborto em crianças vítimas de estupro - (crédito: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados)

A Câmara dos Deputados aprovou, na noite da última quarta-feira (5/11), o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/25, que suspende a Resolução 258/24 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e revoga diretrizes que facilitavam o acesso ao aborto legal por crianças e adolescentes vítimas de estupro. O texto, foi aprovado por 317 votos a favor, 111 contra e uma abstenção. Mas, afinal, o que muda? 

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O que muda com o projeto

A resolução do Conanda previa que a interrupção da gravidez de menores vítimas de violência sexual não dependeria da apresentação de boletim de ocorrência, de decisão judicial ou da comunicação aos responsáveis legais — especialmente quando houvesse suspeita de que o agressor fosse um familiar.

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Com a aprovação do PDL, essas flexibilizações deixam de valer. Na prática, o projeto reinstaura a necessidade de maior rigor documental e pode exigir autorização dos pais ou do Judiciário, conforme interpretação do Código Penal.

Os autores do PDL alegaram que a resolução extrapolava as atribuições do Conanda e invadia competência do Legislativo ao criar regras que, segundo eles, contrariavam a legislação penal vigente. A deputada Chris Tonietto (PL-RJ), autora da proposta, afirmou que o aborto representa “outra forma de violência”. 

Um dos trechos mais criticados da resolução previa que, em caso de divergência entre a vontade da criança e de seus responsáveis, os profissionais de saúde deveriam acionar a Defensoria Pública e o Ministério Público para buscar orientação. Os defensores do PDL afirmam que esse dispositivo contrariava o Código Penal, segundo o qual crianças e adolescentes não têm capacidade civil para decidir sobre o procedimento.

Por outro lado, parlamentares contrários ao projeto argumentaram que, em muitos casos, o agressor é o próprio pai ou responsável, e que exigir autorização desses mesmos responsáveis pode inviabilizar o acesso ao aborto legal, forçando a continuidade de gestações resultantes de estupro.

Outro ponto de disputa foi a ausência, na resolução do Conanda, de um limite gestacional para a realização do aborto. O relator do PDL, deputado Luiz Gastão (PSD-CE), afirmou que isso permitiria interrupções “até 40 semanas de gravidez”, o que seria, em suas palavras, “incompatível com o Código Penal e com a vida do nascituro”. Ele destacou ainda que, a partir de 24 semanas, há chances reais de sobrevivência do bebê com suporte neonatal, argumento usado para sustentar a revogação da norma.

Reações

De um lado, os defensores do projeto de lei afirmaram estar protegendo a vida e a integridade da criança gestante e do feto, e que a ausência de boletim de ocorrência poderia favorecer o agressor. Para eles, o aborto não deve ser tratado como solução, mas como uma “segunda violência”.

De outro, os críticos do PDL afirmam que o projeto aumenta a burocracia e revitimiza meninas estupradas, impondo barreiras que, na prática, podem transformar o direito ao aborto legal em uma impossibilidade. Deputadas da oposição apontaram que a exigência de autorização familiar “obriga a menina a ser mãe do próprio estuprador” e que a decisão da Câmara retira das vítimas a proteção que o Conanda buscava garantir.

Outro aspecto polêmico é o da objeção de consciência médica. A resolução do Conanda classificava como conduta discriminatória a recusa do profissional que duvidasse da palavra da vítima. O PDL reverte essa disposição, reforçando o direito do médico de se recusar a realizar o procedimento.

O PDL 3/25 ainda precisará ser analisado pelo Senado Federal, mas o debate já ecoa nas esferas jurídica e ética. Para juristas, a medida recoloca a questão sob o guarda-chuva do Código Penal, mas pode reduzir o alcance da política de proteção à infância em casos de violência sexual.

Em termos práticos, o projeto não altera o direito ao aborto legal previsto em lei — permitido em casos de estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia —, mas restringe os mecanismos que garantiam o acesso a esse direito.

Enquanto a Câmara defende que o PDL “corrige excessos de um órgão consultivo”, entidades de direitos humanos veem na aprovação um retrocesso na proteção de meninas vítimas de estupro, sinalizando um país ainda dividido entre o amparo à vítima e a tutela sobre seu corpo.

A organização não governamental E Se Fosse Você, se pronunciou por meio das redes sociais. A entidade afirma que a resolução, editada em 2024, não criou novos direitos, apenas organizou as normas que já estão previstas em lei para o aborto legal nos casos de estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia. "Mesmo assim, querem derrubá-la", afirmaram na publicação. 

Além disso, ressaltaram que "o PDL aprovado pela Câmara também impede que o governo realize campanhas de conscientização sobre o casamento entre adultos e crianças, o que aprofunda um cenário já crítico de violação de direitos, considerando que o país ainda tem 34 mil meninas menores de 14 anos em uniões conjugais."

O Correio tentou contato com o Ministério das Mulheres, mas até a mais recente atualização desta reportagem, não houve retorno.

 

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postado em 06/11/2025 17:28
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