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Congresso e Judiciário: Lacunas de uma relação institucional

Polêmica do impeachment contra ministros do STF expõe um problema que se arrasta há 37 anos entre o Legislativo e o Judiciário. Até hoje, há artigos da Constituição à espera de regulamentação no Parlamento

Congresso deveria ter regulamentado vários dispostivos previstos na Constituição, mas deixou de fazê-lo -  (crédito: Kayo Magalhaes/Câmara dos Deputados)
Congresso deveria ter regulamentado vários dispostivos previstos na Constituição, mas deixou de fazê-lo - (crédito: Kayo Magalhaes/Câmara dos Deputados)

Um dos mais resistentes focos da tensão entre Congresso e Supremo Tribunal Federal está no que a Constituição de 1988 não esclarece. Muitos dispositivos que dependem de regulamentação infraconstitucional ainda aguardam iniciativa do Poder Legislativo. Essas lacunas acabam provocando questionamentos que desaguam no Poder Judiciário, obrigando o STF a apresentar soluções — mesmo que temporárias — ao problema da falta de regulamentação, por parte do Parlamento, de artigos da Constituição. É o caso das reformas do Código Penal, de 1984, que vêm sendo feita por etapas, e do Código Civil, em tramitação no Senado.

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Outro problema com a mesma origem está na adaptação de um emaranhado de leis antigas — anteriores à promulgação da Carta Magna — ao texto aprovado na Assembleia Nacional Constituinte de 1988. A Lei do Impeachment, de 1950, é um exemplo. Por falta de regulamentação atualizada, vem sendo usada como base para os processos de crime de responsabilidade contra presidentes da República desde a ação que tirou Fernando Collor de Mello do Palácio do Planalto, em 1992.

Provocado pelo PSol e pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), o ministro Gilmar Mendes apontou inconstitucionalidades na lei e baixou uma liminar (decisão individual com efeitos imediatos) dificultando a abertura de processos de impeachment de ministros do Supremo. Depois, em acordo com o Senado, revogou dois itens da liminar para retirar da Procuradoria-Geral da República (PGR) o monopólio da apresentação da denúncia. Enquanto isso, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado discute a elaboração de uma nova Lei do Impeachment.

Para juristas ouvidos pelo Correio, há pouco empenho do Congresso em debater marcos legais que preencham essas lacunas constitucionais, o que obriga o Judiciário a entrar em campo para dirimir conflitos. Mesmo sendo esta uma atribuição institucional, ajuda a alimentar o embate com quem vê na Corte uma barreira para o exercício pleno da política.

Para o advogado Lênio Streck, "a inacão do Congresso atua como elemento tensionador, porque muitas matérias acabam no colo do STF, que é obrigado a decidir". No caso da Lei do Impeachment, Streck avalia que o ministro Gilmar Mendes tomou uma decisão correta e bem embasada do ponto de vista jurídico. "É uma lei que só pode ser declarada constitucional se for adaptada (à Constituição atual)". Mas, para isso, é preciso que o Congresso se mobilize para votar.

Em uma reação à decisão monocrática do decano do STF, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AC), negocia com lideranças partidárias a votação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) com base em um projeto do antecessor dele na Presidência do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O relator da matéria, senador Weverton Rocha (PDT-MA), já avisou que a votação, na comissão, só será pautada no ano que vem, após o recesso do Legislativo. Enquanto isso, prevalece a liminar de Gilmar.

Para o jurista Pedro Navarro, que acompanhou de perto o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a decisão do decano do STF "é um convite para o Legislativo legislar, produzir uma nova e moderna legislação de impeachment". Para ele, "de nada adianta ficar só criticando o Supremo".

Navarro também considerou "juridicamente correta" a liminar de Gilmar, com uma ressalva: ele não concorda com o monopólio da PGR para apresentar denúncia de crime de responsabilidade contra ministro do Supremo e presidente da República, como definiu o ministro na liminar.

Nos termos da lei

Há muitos casos de preceitos constitucionais que aguardam regulamentação do Congresso. A licença paternidade, por exemplo, está contemplada no artigo 7º da Constituição, mas o prazo de cinco dias está prevista apenas nas Disposições Transitórias da Carta Magna. O Supremo reconheceu a omissão dos parlamentares em 2023, em uma ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que considerava o prazo muito curto para o pai dar suporte à mãe e ao recém-nascido. Mas o tema se arrasta até hoje sem que a ampliação do prazo da licença paternidade seja aprovada.

Também estão pendentes de regulamentação os critérios para avaliação de desempenho dos funcionários públicos, prevista no Artigo 41. Essa definição é importante para embasar processos por insuficiência de desempenho de servidores.

Outro exemplo é o imposto sobre grandes fortunas, previsto no Artigo 153, que nunca foi regulamentado pelo Congresso. Em fevereiro deste ano, a Suprema Corte reconheceu a omissão, mas o ministro Cristiano Zanin (que substituiu o relator Marco Aurélio Mello, que se aposentou) não fixou prazo para o Parlamento aprovar a regulamentação do imposto. "O Estado brasileiro está se esforçando para discutir e aplicar o melhor modelo desse tributo", justificou ele, à época.

Não é difícil identificar pontos que carecem de regulamentação infraconstitucional. Os juristas dão a dica: é só observar se, no fim do artigo em discussão, está escrito "na forma da lei" (ou expressão semelhante). Isso significa que o constituinte deixou para o Congresso a missão de regulamentar o dispositivo em questão. O problema surge quando, ao pesquisar a regulamentação subsidiária, ela simplesmente não é encontrada. Nesses casos, cabe exclusivamente ao STF dirimir dúvidas quanto à aplicação do preceito constitucional.

 

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postado em 15/12/2025 03:55
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