Reparação Histórica

Acordo inédito: o reconhecimento da dor das mães de Santos Dumont

Acordo histórico entre União, governo de Minas e famílias encerra disputa de quase meio século e garante indenização a vítimas de um esquema de adoções fraudulentas que levou mais de 170 crianças brasileiras ao exterior durante os anos 1980

Quatro décadas depois das adoções ilegais em Santos Dumont (MG), famílias das vítimas finalmente veem o Estado reconhecer sua responsabilidade e garantir reparação por uma das maiores tragédias sociais do país -  (crédito: Freepik)
Quatro décadas depois das adoções ilegais em Santos Dumont (MG), famílias das vítimas finalmente veem o Estado reconhecer sua responsabilidade e garantir reparação por uma das maiores tragédias sociais do país - (crédito: Freepik)

Mais de 40 anos após o desaparecimento forçado de dezenas de crianças do município mineiro de Santos Dumont, o Estado brasileiro dá um passo no reconhecimento de uma das maiores violações de direitos humanos da história recente do país. Um acordo firmado entre a União, o governo de Minas Gerais e familiares das vítimas garantirá o pagamento de indenizações a parte das famílias afetadas pelo esquema de adoções internacionais irregulares que, entre 1985 e 1987, arrancou mais de 170 crianças de seus lares sob o aval de autoridades públicas, advogados e religiosas. A medida representa um marco de reparação moral e financeira após décadas de luta por justiça.

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O pacto, resultado de meses de negociações conduzidas pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais (AGE-MG), encerra uma ação civil que tramitava desde 2017 no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6). A demanda foi proposta por três mães e dois irmãos de sete crianças enviadas ao exterior sem autorização das famílias, em um processo que, segundo os autos, contou com a participação direta do então juiz de Direito Dirceu Silva Pinto, já falecido, servidores do Judiciário e comissários de menores. O tribunal reconheceu a responsabilidade dos entes federativos, apontando falhas graves na atuação institucional e negligência na fiscalização das adoções.

Ao julgar o caso, o TRF6 afastou a tese de prescrição e destacou o contexto de extrema vulnerabilidade social das famílias atingidas. O acórdão ressaltou que o episódio ocorreu em meio à transição da ditadura militar para a democracia, período marcado pelo medo, repressão e descrédito nas instituições. Segundo os desembargadores, a combinação de pobreza, desinformação e abuso de autoridade criou o cenário perfeito para a atuação de uma rede que mascarava adoções ilegais como atos de caridade. O tribunal concluiu que Minas Gerais teve responsabilidade direta, por meio da conduta de seus agentes, enquanto a União foi responsabilizada por omissão, ao permitir a saída das crianças do país sem controle adequado.

O acordo estabelece que o Estado de Minas Gerais responderá por 80% dos valores devidos, cabendo à União arcar com os 20% restantes. As indenizações variam conforme o número de filhos levados e o grau de dano comprovado. Maria Ricardina de Souza, mãe de uma das crianças desaparecidas, receberá R$ 409 mil, enquanto seus filhos Maria Concebida Marques e Sebastião de Souza Marques terão direito a R$ 122 mil cada. Outras mães, como Heloisa Aparecida da Silva e Isaura Cândida Sobrinho, ambas com três filhos retirados à força, serão contempladas com valores superiores a R$ 410 mil. O total das reparações ultrapassa a marca de R$ 1,4 milhão.

Para a advogada da União Daniela Mendonça de Melo, coordenadora regional de Negociação da Procuradoria-Regional da União da 6ª Região (PRU6), o acordo representa “um avanço civilizatório e uma resposta do Estado à dor dessas mulheres”. Segundo ela, o consenso foi alcançado após quase seis meses de tratativas e reflete o compromisso do poder público com a pacificação social e a responsabilização histórica. “Essas famílias esperaram décadas por um reconhecimento que, embora tardio, simboliza justiça e humanidade”, afirmou.

Após a homologação judicial, os pagamentos colocarão fim definitivo à disputa, impedindo novas ações ou recursos sobre o tema. Ainda que nenhuma compensação financeira seja capaz de reparar integralmente o trauma, o desfecho encerra um ciclo de abandono institucional e devolve às vítimas o direito à memória e à dignidade. Para as famílias de Santos Dumont, o acordo não apaga o passado, mas reafirma que a verdade, ainda que demore, pode triunfar sobre o silêncio e o esquecimento.

* Estagiária sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza

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postado em 27/10/2025 13:34 / atualizado em 27/10/2025 13:39
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