
O Brasil registrou, entre 2023 e 2024, a maior redução da pobreza em uma década, com 8,6 milhões de pessoas deixando essa condição, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resultado da ampliação dos programas sociais do governo federal e da recuperação do mercado de trabalho.
Apesar do avanço, o país segue entre os mais desiguais do mundo, com profundas disparidades raciais, regionais e de gênero, além de apresentar a maior proporção de trabalhadores pobres entre os 40 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Para medir a redução, o IBGE adota a linha internacional de pobreza do Banco Mundial, que considera pessoas vivendo com menos de US$ 6,85 por dia, o equivalente a cerca de R$ 36,40 na cotação atual. Com esse critério, a proporção de brasileiros nessa condição caiu de 27,3% para 23,1%, o que representa 8,6 milhões de pessoas que deixaram a pobreza.
A proporção de pessoas em extrema pobreza — com renda inferior a US$ 2,15 por dia, o equivalente a cerca de R$ 11,40 — caiu de 4,4% para 3,5%, o que representa 1,9 milhão de brasileiros que deixaram essa condição. Segundo o estudo, o avanço se deve, principalmente, à retomada do Bolsa Família, com ampliação dos valores após a pandemia.
O levantamento aponta, ainda, que, embora o mercado de trabalho tenha contribuído para o resultado, ele não é suficiente, por si só, para retirar uma parcela significativa da população da pobreza. Sem programas como Bolsa Família, Vale-Gás e subsídios alimentares, a extrema pobreza teria praticamente triplicado em 2024, passando de 3,5% para 10%, enquanto a proporção de pessoas pobres subiria de 23,1% para 28,7%.
Segundo o relatório, em 2021, durante a pandemia de covid-19, a parcela de brasileiros vivendo na pobreza chegou a 36,8%, e a queda observada nos anos seguintes só foi possível com a combinação de políticas sociais e a recuperação gradual do emprego. Ainda assim, especialistas destacam que a pobreza monetária não capta todas as dimensões da privação, como acesso a saúde, educação, transporte e saneamento. Dessa forma, a melhora da renda per capita não necessariamente se traduz em avanços plenos nas condições de vida.
Barreiras estruturais
Para o economista César Bergo, professor da Especialização em Mercado Financeiro da Universidade de Brasília (UnB), os avanços na redução da pobreza são relevantes, mas ainda são considerados insuficientes. Ele enfatiza que a desigualdade brasileira segue marcada por barreiras estruturais.
"Os números mostram que a desigualdade no Brasil ainda é grande. Temos grandes dificuldades com relação à questão de raça, de gênero. Tudo isso afeta, não tenho dúvida, a população". Para ele, esses elementos explicam por que, mesmo com melhorias recentes, o país se mantém distante dos padrões de equidade observados em outras economias.
Ele ressalta que é preciso manter e aperfeiçoar as políticas públicas para que, aos poucos, melhores índices possam ser comemorados. "É preciso continuar políticas públicas, visando, de alguma forma, melhorar esse cenário. É um cenário ainda preocupante, mas, à medida que os anos passam, o Brasil vem conseguindo melhorar o panorama, e isso é positivo", disse.
Bergo destaca, ainda, o peso da concentração de renda e das desigualdades regionais na persistência da desigualdade no país. "A concentração de renda acaba contribuindo para esse cenário, assim como as diferenças regionais, especialmente no Nordeste e no Norte. O Brasil é um país continental, com problemas econômicos que afetam essa dinâmica, além da questão do nível de educação", afirmou.
Para o professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), Rogério Jerônimo Barbosa, o cenário atual representa um avanço expressivo, mas ainda distante do potencial que o Brasil poderia ter alcançado, caso não tivesse enfrentado sucessivas crises nos últimos 10 anos.
"Os programas sociais atuaram de forma muito importante nos primeiros anos. Na pandemia, tivemos o auxílio emergencial, seguido do Auxílio Brasil, que volta a ser Bolsa Família. Uma vez que o auxílio emergencial abriu as portas para uma transferência de renda mais robusta, era impossível voltar atrás", destacou.
Ele explicou que em 2022, a estruturação do Bolsa Família passou por melhorias e corrigiu falhas como problemas de reajustes irregulares e de desaceleração dos cadastramentos, "o que permitiu que os programas sociais cumprissem melhor seu papel", afirmou. Ele enfatiza que esse fortalecimento foi fundamental para que milhões de famílias conseguissem deixar a linha da pobreza no período recente.
Segundo ele, há um efeito combinado entre políticas sociais e emprego, com evidências que mostram que beneficiários dos programas tendem a se engajar mais na busca por trabalho. "Os programas sociais impelem as pessoas na direção de busca de emprego e aumentam a produtividade, diferentemente de percepções de senso comum. No Brasil, o Bolsa Família estimula o ingresso no mercado de trabalho", afirmou.
Nova referência
Apesar dos avanços, o professor Rogério Jerônimo Barbosa destacou que o Banco Mundial atualizou, em julho, a linha de pobreza para US$ 8,30 por dia e que, mesmo com essa mudança, o índice segue elevado no Brasil. "Se a gente olhar para essa métrica mais ambiciosa, teríamos aproximadamente 26% de pessoas na pobreza, e não apenas 23%. Isso é bastante alto para um país de dimensões do Brasil. Pouco mais de um quarto da população é pobre", disse.
O especialista destacou, ainda, que o Brasil segue entre os países mais desiguais do mundo, especialmente quando analisado pelo índice de Gini, que mede a concentração de renda em uma escala de 0 a 1. Quanto mais próximo de zero, maior a igualdade; quanto mais perto de 1, maior a desigualdade.
Segundo ele, o índice brasileiro, em torno de 0,504, figura entre os mais elevados do mundo. Quando considerados dados fiscais e os rendimentos do topo da distribuição, a desigualdade pode alcançar níveis entre 0,6 e 0,7, os mais altos globalmente.
"O relatório do IBGE mostra que o Brasil é o segundo país mais desigual entre os analisados, atrás apenas da Costa Rica. Temos renda suficiente para garantir bem-estar para a maioria da população, mas a desigualdade funciona como um freio. Ela representa o quanto perdemos de potencial de bem-estar", avaliou.
Sobre a manutenção dos programas sociais como instrumento de combate à pobreza, Barbosa afirmou que eles são indispensáveis para consolidar os avanços recentes e permitir que o país reduza, no longo prazo, a pobreza estrutural.
"Não é como se agora pudéssemos tirar a muleta e está todo mundo caminhando normalmente. Não. Esta é a base de sustentação para que a gente venha a reduzir a pobreza em bases mais estruturais. Caso contrário, estamos falando de uma redução artificial", afirmou.
Os programas sociais costumam reduzir a pobreza em cerca de 3,5 pontos percentuais. Agora, reduzem em cerca de 6,5 pontos. É uma evidência clara de que sem eles a pobreza estrutural é muito grave", acrescentou.
Raça, gênero e idade
Apesar da queda nos índices gerais de pobreza, o levantamento do IBGE confirma a persistência de fortes desigualdades de raça, gênero e idade. Pretos e pardos, que representam 56,8% da população, concentram 71,3% das pessoas pobres no país.
Em 2024, 25,8% da população preta e 29,8% da parda viviam abaixo da linha internacional da pobreza, ante 15,1% entre os brancos. Na extrema pobreza, as disparidades se repetem: 3,9% dos pretos e 4,5% dos pardos estavam nessa condição, contra 2,2% dos brancos.
As diferenças também aparecem no recorte de gênero. As mulheres foram mais afetadas pela pobreza em 2024, com taxa de 24%, frente a 22,2% entre os homens. Entre mulheres pretas e pardas, a vulnerabilidade é ainda maior, com a extrema pobreza alcançando 4,5%.
Já no recorte etário, crianças e adolescentes de zero a quatorze anos apresentaram os piores indicadores, com 39,7% em situação de pobreza e 5,6% em extrema pobreza, percentuais superiores aos observados em outras faixas etárias.
Em contraste, a população idosa registra níveis significativamente menores de pobreza, reflexo da proteção previdenciária. Entre brasileiros com sessenta anos ou mais, apenas 8,3% eram pobres e 1,9% extremamente pobres.
Sem aposentadorias e pensões, esses índices saltariam para 52,2% e 35,2%, respectivamente. O estudo destaca que o sistema previdenciário é, hoje, o principal mecanismo de proteção social do país, e que a vinculação do valor mínimo dos benefícios ao salário mínimo garante renda estável e, em muitos casos, sustenta domicílios inteiros.
Cozinha solidária
Criado em 2006 por David Hertz e Urideia Andrade, o projeto Gastromotiva é uma organização sem fins lucrativos que mantém, na Lapa, região central do Rio de Janeiro, uma cozinha solidária voltada à formação em gastronomia social e à oferta de refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade. Desde a fundação, mais de 11 mil alunos foram formados e mais de 3 milhões de refeições foram produzidas com alimentos resgatados.
Em 2024, o projeto recebeu 38 toneladas de alimentos que seriam descartados e produziu mais de 96 mil refeições. A operação é mantida por doações diárias, que determinam cardápios variáveis, e por almoços pagos pelo público, que financiam os jantares destinados à população em situação de vulnerabilidade. O governo estadual não participa da manutenção, e a prefeitura apenas cede o espaço. Empresas privadas, como a Coca-Cola, oferecem apoio financeiro.
Segundo Hertz, a Gastromotiva atua diretamente no enfrentamento da fome, mas com foco em soluções estruturais. "Nós trabalhamos um sintoma da pobreza, que é a fome, mas sabemos que ainda precisamos avançar muito. O papel da Gastromotiva é estudar, criar e moldar soluções que, quando funcionam, precisam do equipamento público para ganhar escala", afirmou.
Ele destacou, ainda, o caráter replicável da iniciativa. "O Refettorio Gastromotiva é um negócio social autossustentável, no qual o almoço dos clientes financia o jantar para pessoas em situação de vulnerabilidade. É um modelo de impacto que pode ser replicado em qualquer cidade, mas que depende da força das parcerias entre sociedade civil, empresas, ONGs e governo para se manter", completou.

Brasil
Brasil
Brasil
Brasil
Brasil
Brasil