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Gestantes em Fernando de Noronha precisam viajar 500km

Grávidas são orientadas a sair da ilha no sétimo mês de gestação rumo ao Recife para dar à luz. O trajeto é feito de avião

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10/08/2025 08:07 - Atualizado em 12/08/2025 14:52
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Imagine a angústia de ter que deixar a própria casa e viajar centenas de quilômetros para dar à luz. Por mais de duas décadas, essa é a realidade enfrentada pelas gestantes de Fernando de Noronha. As mulheres são orientadas — e, às vezes, obrigadas — a sair da ilha e ir até o Recife no sétimo mês de gestação, pois a única maternidade do local foi desativada em 2004.

A distância de Fernando de Noronha até a capital pernambucana é de mais de 500km e o trajeto é feito de avião. Embora o estado arque com os custos da viagem e da estadia para a gestante e um acompanhante, ter que sair do local onde mora para ter um bebê é uma saga que muitas mulheres gostariam de não ter que enfrentar. 

Trajeto entre Fernando de Noronha e Recife é de 500Km
Trajeto entre Fernando de Noronha e Recife é de 500Km (foto: Reprodução/Google Maps)

A empresária Ana Carolina da Silva nasceu em Fernando de Noronha em 1986 e desejava que a primeira filha também viesse ao mundo na ilha. Grávida pela primeira vez em 2018, Ana Carolina relata que passou por muito estresse antes mesmo de ter que sair de casa. A empresária, que decidiu viajar para o Recife apenas no oitavo mês e meio de gestação, recebeu ofícios da administração local e também uma carta do Conselho Tutelar questionando se ela não se preocupava com a bebê.

“Qual mãe, em sã consciência, não estaria preocupada com a segurança do próprio bebê? Eles me estressaram e pressionaram, em vez de ter um momento tranquilo, minha pressão subia. Eu sofri tanto estresse que nem consegui ter minha filha por parto normal. Precisei levar duas raquianestesias para suportar tudo”, conta.

A empresária noronhense lembra que chorou muito no dia que teve que sair da ilha. “É um sonho manter a história da família. Eu queria que minha filha nascesse no mesmo lugar onde nasci. Quando eu nasci, em 1986, as condições eram muito mais precárias. Ainda assim, minha mãe me teve com tranquilidade. Hoje, apesar dos avanços, não temos uma maternidade funcionando”, afirma.

  • A empresária Ana Carolina da Silva nasceu em Fernando de Noronha em 1986 e desejava que a primeira filha também tivesse nascido na ilha
    A empresária Ana Carolina da Silva nasceu em Fernando de Noronha em 1986 e desejava que a primeira filha também tivesse nascido na ilha Arquivo pessoal
  • Mãe de Rihanna, 6 anos, Ana Carolina está no quarto mês da segunda gestação e sente um misto de emoções como se fosse a primeira gravidez
    Mãe de Rihanna, 6 anos, Ana Carolina está no quarto mês da segunda gestação e sente um misto de emoções como se fosse a primeira gravidez Arquivo pessoal

Mãe de Rihanna, 6 anos, Ana Carolina está no quarto mês da segunda gestação e sente um misto de emoções como se fosse a primeira gravidez. "É frustrante ter que abandonar a nossa casa, nossa família. Ficar longe de tudo e de todos em um momento tão delicado", cita.

Ana Carolina pontua, ainda, que a falta de maternidade em Fernando de Noronha impacta diretamente a vida das mulheres de modos diferentes de acordo com cada realidade. "Eu ainda tive uma rede de apoio, mas muitas não têm. Tem mães que não têm assistência, estrutura, nem família por perto, e ficam isoladas no período em que mais precisam de apoio. Recebem apenas a passagem e um quarto. Isso poderia ser resolvido com uma maternidade. Dizem que o custo é alto, mas sabemos que dinheiro não é o problema. Eu nasci aqui, minha irmã também, minha mãe, meus tios. Minha avó foi responsável por alfabetizar muita gente aqui. Temos história nesta ilha", argumenta.

Essa mesma sensação de pertencimento em relação a Fernando de Noronha é sentida por Alyne Dias Luna. Moradora da ilha desde 2009, a também empresária teve que se deslocar para o Recife nas três gestações. Ela é mãe de Helena Meireles Luna, 5 anos; Heloísa Meireles Luna, 3 anos e Heitor Meireles Luna, 2 anos. Na primeira gravidez, em 2020, Alyne foi levada ao aeroporto pela polícia por ter se recusado a sair da ilha no tempo determinado. Ela se negou a viajar para Recife porque estava com medo de ser contaminada pelo vírus da Covid-19.

“Naquele momento eu julguei que seria melhor correr o risco de precisar de uma cesariana aqui na ilha, do que ter que ir para onde estava o maior índice de casos de Covid, que era Recife. Isso me assustou muito. E por mais que eles deem o suporte do hotel, o meu esposo precisou ficar na ilha. Quando ele chegou, minha filha já tinha 13 dias de nascida, então ele não pôde estar ao meu lado na primeira vez em que eu fui mãe. A pressão psicológica foi muito grande”, diz.

Alyne Dias Luna e família
Moradora da ilha desde 2009, Alyne Dias Luna teve que se deslocar para o Recife nas três gestações (foto: Arquivo pessoal)

A Secretária de Saúde de Pernambuco informa que a média anual de nascimentos em Fernando de Noronha é de 58. A ilha abriga mais de 3 mil habitantes e recebe cerca de 100 mil turistas por ano. Nesse sentido, segundo o Ministério Público de Pernambuco, o transporte e as despesas das gestantes são pagas durante a estadia na capital pernambucana "porque tal providência ainda se mostra mais barata do que manter uma maternidade na ilha".

Durante o período em que as mulheres permanecem no Recife, o estado fica responsável por organizar agendamento de consulta, exames, assim como acompanhamento pré-natal e supervisionado, com orientações relativas às maternidades de referência. “Toda logística é planejada para reduzir riscos obstétricos, garantir nascimento assistido e preservar direitos reprodutivos das mulheres noronhenses”, afirma a Secretaria de Saúde.

No entanto, Bernadete Perez Coelho, professora do departamento de medicina da Universidade Federal de Pernambuco, considera “problemático” o fato de a ilha não dispor nem de um centro de parto normal. “Toda a rede deveria ser estruturada para garantir o acesso, principalmente por meio da atenção primária, com capacidade de resolver problemas e acompanhar a gestação de risco habitual — que representa, de forma geral, cerca de 75% das gestações", cita.

"A média nacional gira em torno de 85%, mas, na realidade do Nordeste, estimamos que três quartos sejam de risco habitual, e um quarto, de alto risco, considerando as condições sociais e contextuais que influenciam diretamente o processo de saúde e adoecimento. Portanto, estima-se que aproximadamente 75% das gestantes poderiam ter seus partos assistidos localmente”, acrescenta Bernadete.

Hospital São Lucas, em Fernando de Noronha
A única maternidade na ilha, no Hospital São Lucas, foi desativada em 2004 (foto: Divulgação/Governo de Pernambuco)

A especialista chama atenção para a importância do cuidado integral às mulheres, destacando ser fundamental que haja integração do pré-natal ao parto, do nascimento ao puerpério. Segundo Bernadete, o deslocamento para outros territórios pode gerar fragmentação na assistência médica. “Mesmo quando os serviços estão no mesmo território, muitas vezes já enfrentamos dificuldades de coordenação do cuidado — ou seja, de manter uma comunicação eficaz, fluida e viva entre os diferentes pontos da rede. Imagine, então, quando impomos um deslocamento tão grande: da casa da mulher para outra cidade ou estado, para que ela possa dar à luz”, cita a professora.

Ainda de acordo com Bernadete, é necessário ter maternidades integrais, ou seja, que contem com leitos para risco habitual, centros de parto normal e estrutura para atender situações que podem evoluir rapidamente e exigir cuidados intensivos, como Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para gestantes e bebês. “Esse tipo de estrutura deve estar previsto mesmo em unidades de risco habitual, pois complicações podem surgir de forma súbita”, pontua.

A professora Bernadete Perez Coelho elenca uma série de possíveis soluções para enfrentar o problema. O primeiro passo é organizar uma rede integrada de pré-natal. A especialista chama a atenção para a necessidade de que a atenção primária alcance todas as mulheres, especialmente nos casos em que a gravidez evolua para alto risco.

"Nesses casos, é fundamental ter uma retaguarda especializada, com pré-natal de alto risco articulado com maternidade também de alto risco. Se essa articulação do atendimento de alto risco vai ser feita na ilha de Fernando de Noronha ou em Recife, o importante é garantir o acesso facilitado", frisa.

Bernadete também reafirmou a importância do centro de parto normal na ilha, além de garantir o transporte antecipado das mulheres nas gestações de alto risco, o acolhimento adequado e assegurar o local onde as grávidas vão ficar durante o período, incluindo o pós-parto.

Expediente

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