O nascimento é a inauguração da nossa jornada no mundo. Mas os caminhos que conduzem a este momento podem ser longos, incertos e, não raro, perigosos. Ainda que o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos consagre a igualdade e a dignidade como princípios fundadores, o lugar e as condições em que se nasce continuam marcados por desigualdades estruturais.
Em um país de proporções continentais, dar à luz com segurança e dignidade pode ser o primeiro privilégio ao qual uma criança tem — ou não — acesso. No Brasil, muitas mulheres percorrem quilômetros de ônibus, carros, trens, barcos ou aviões para garantir que os filhos venham ao mundo em ambiente minimamente adequado.
A precariedade da distribuição de serviços de saúde e a ausência de maternidades em mais da metade dos municípios transformam o parto em uma jornada. E o transporte se torna, nesse cenário, mais que um meio: é a ponte entre o direito e a exclusão.
Clarisse Cunha Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), ressalta que o acesso ao meios de locomoção e à saúde são direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição, e estão diretamente conectados. “Não tem como assegurar o acesso à saúde sem garantir o acesso ao transporte”, afirma.
Segundo Clarisse, o sistema de transporte urbano no Brasil foi historicamente pensado para atender à lógica do trabalho produtivo, especialmente os deslocamentos entre casa e emprego, nos horários de pico. “Mas o trabalho reprodutivo — como gestar, cuidar, acompanhar filhos — também precisa ser reconhecido e priorizado. Não se trata apenas da ida ao hospital para o parto, mas de todo o pré-natal, das consultas, das emergências. Muitas vezes, essas mulheres estão acompanhadas de filhos pequenos ou familiares. O acesso à saúde materna pressupõe o acesso ao transporte — para todas essas pessoas envolvidas.”
Distâncias que custam vidas
Dados do Centro de Estudos Empíricos em Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV CEEE) indicam que 31% das mulheres no Brasil precisam viajar, em média, 59km para realizar o parto. Esse deslocamento eleva em 0,5 ponto percentual a probabilidade de mortalidade neonatal. Os números mostram que o simples fato de nascer longe da própria cidade pode se tornar um risco de vida.
Entre 2006 e 2017, a distância média percorrida por gestantes aumentou de forma consistente. No Centro-Oeste, por exemplo, esse trajeto passou de 73,7km para 104,4km — um crescimento de 42%. Em estados como Mato Grosso, a média praticamente dobrou, saltando de 69km para 132km.
No Norte do país, os desafios são ainda mais extremos. Apesar de apenas 16% das gestantes precisarem se deslocar para dar à luz, as distâncias chegam a superar 290km e 30 horas de viagem. No Nordeste, a proporção é maior: cerca de 36% das mulheres precisam sair das cidades. Isso evidencia dois tipos distintos de barreiras: uma relacionada à centralização dos serviços, outra à extensão territorial e à ausência de infraestrutura.
Bruna Fonseca, pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz, destaca que “há uma distribuição desigual dos serviços de maternidade, com maior concentração no Sul e Sudeste, agravando os deslocamentos nas regiões Norte e Nordeste”.
O preço da ausência
Em milhares de municípios brasileiros, não há maternidades. As gestantes, sobretudo no terceiro trimestre da gestação, são obrigadas a viajar em busca de atendimento — muitas vezes, sem garantia de vaga, transporte adequado ou acompanhamento. No Entorno do Distrito Federal, cinco dos 11 municípios não têm maternidade. Em 2023, a rede pública do DF realizou 12.389 partos de mulheres residentes em Goiás.
Em 2017, a Lei nº 13.484 permitiu que recém-nascidos fossem registrados no município de residência da mãe, mesmo que o parto ocorra em outra cidade. Até então, o local de nascimento — e não de origem — era o que constava nos documentos oficiais. Isso explicava porque cidades sem maternidades passavam anos sem registrar uma única criança nascida ali.
Alyne Pimentel: uma tragédia para não esquecer
O Brasil foi o primeiro país condenado por morte materna evitável. O caso de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, ocorrido em 2002, tornou-se símbolo da negligência institucional. Grávida de seis meses, a jovem negra procurou atendimento médico em Belford Roxo (RJ), mas foi mandada de volta para casa com um remédio. Dias depois, retornou à unidade e, após horas de espera, teve o parto induzido para retirada do feto, já morto. Apesar do quadro grave, Alyne aguardou mais oito horas por uma ambulância. Morreu cinco dias depois, aos 28 anos.
Em 2023, o Ministério da Saúde lançou a Rede Alyne, em substituição à Rede Cegonha, com a meta de reduzir em 25% a mortalidade materna até 2027. A estratégia inclui um investimento de R$ 1 bilhão neste ano e foca, sobretudo, na redução da mortalidade entre mulheres negras — hoje, 50% maior que a média nacional.
Fernando de Noronha: nascer é proibido
Já o caso de Fernando de Noronha escancara os limites impostos pelo Estado às mulheres. Desde 2004, gestantes são obrigadas a deixar a ilha no sétimo mês de gravidez e seguir para o Recife, a mais de 500km de distância, por decisão administrativa. Em 2020, a empresária Alyne Dias Luna se recusou a deixar a ilha, temendo a covid-19. A Justiça ordenou a remoção forçada.
O Ministério Público do Pernambuco explica que a política é mais econômica do que manter uma maternidade local. Mas a professora Bernadete Coelho, da Universidade Federal de Pernambuco, discorda. “Deslocar gestantes dessa forma fere o princípio da integralidade do cuidado. Já é difícil coordenar o atendimento quando os serviços estão no mesmo território. Imagine entre cidades diferentes, a centenas de quilômetros de distância”, aponta.
Em regiões isoladas, o Estado chega de farda
Em localidades remotas, o parto seguro só ocorre graças ao esforço de servidores públicos. Forças Armadas, policiais e bombeiros garantem o acesso de gestantes aos hospitais por vias terrestres, aéreas ou fluviais. Na Amazônia, em áreas alagadas, e também no Sul, durante enchentes, esse trabalho silencioso se repete como ato de resistência institucional.
Mas nem sempre a presença do Estado é suficiente. Em muitos casos, gestantes precisam enfrentar barreiras geográficas, burocráticas ou mesmo legais para garantir o direito ao nascimento digno de seus filhos — e, por extensão, à própria cidadania.
O direito de nascer
Dar à luz é um ato ancestral. Mas tornar-se cidadão reconhecido pelo Estado — com CPF, certidão de nascimento e acesso à saúde, educação, assistência e justiça — ainda é, para muitos, uma conquista tardia. Situação que se agrava entre povos tradicionais, ribeirinhos, indígenas, pessoas em situação de rua e populações de fronteira.
O Correio apresenta agora uma série de reportagens especiais: Caminhos do nascimento. Em formato multimídia, com vídeos, podcasts, textos e webstories, quatro jornalistas contam histórias de mães que, apesar de todas as distâncias — físicas, institucionais e simbólicas —, lutam para garantir aos filhos o direito de chegar ao mundo com dignidade, acompanhada de análise de especialistas e propostas para mudar a realidade.