ESPECIAL

Caminhos do nascimento: distâncias separam mães de um parto digno

No Brasil, o parto é uma jornada desigual: mulheres viajam longas distâncias, sem estrutura e transporte adequados, para ter os filhos. Isso aumenta riscos e reflete desigualdades

Foto de perfil do autor(a) Roberto Fonseca
Roberto Fonseca
Foto de perfil do autor(a) Jaqueline Fonseca
Jaqueline Fonseca
Foto de perfil do autor(a) Aline Gouveia
Aline Gouveia
Foto de perfil do autor(a) Raphaela Peixoto
Raphaela Peixoto
10/08/2025 08:00 - Atualizado em 12/08/2025 14:54
6min de leitura

O nascimento é a inauguração da nossa jornada no mundo. Mas os caminhos que conduzem a este momento podem ser longos, incertos e, não raro, perigosos. Ainda que o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos consagre a igualdade e a dignidade como princípios fundadores, o lugar e as condições em que se nasce continuam marcados por desigualdades estruturais.

Em um país de proporções continentais, dar à luz com segurança e dignidade pode ser o primeiro privilégio ao qual uma criança tem — ou não — acesso. No Brasil, muitas mulheres percorrem quilômetros de ônibus, carros, trens, barcos ou aviões para garantir que os filhos venham ao mundo em ambiente minimamente adequado.

A precariedade da distribuição de serviços de saúde e a ausência de maternidades em mais da metade dos municípios transformam o parto em uma jornada. E o transporte se torna, nesse cenário, mais que um meio: é a ponte entre o direito e a exclusão.

Clarisse Cunha Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), ressalta que o acesso ao meios de locomoção e à saúde são direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição, e estão diretamente conectados. “Não tem como assegurar o acesso à saúde sem garantir o acesso ao transporte”, afirma.

Segundo Clarisse, o sistema de transporte urbano no Brasil foi historicamente pensado para atender à lógica do trabalho produtivo, especialmente os deslocamentos entre casa e emprego, nos horários de pico. “Mas o trabalho reprodutivo — como gestar, cuidar, acompanhar filhos — também precisa ser reconhecido e priorizado. Não se trata apenas da ida ao hospital para o parto, mas de todo o pré-natal, das consultas, das emergências. Muitas vezes, essas mulheres estão acompanhadas de filhos pequenos ou familiares. O acesso à saúde materna pressupõe o acesso ao transporte — para todas essas pessoas envolvidas.”

Distâncias que custam vidas

Dados do Centro de Estudos Empíricos em Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV CEEE) indicam que 31% das mulheres no Brasil precisam viajar, em média, 59km para realizar o parto. Esse deslocamento eleva em 0,5 ponto percentual a probabilidade de mortalidade neonatal. Os números mostram que o simples fato de nascer longe da própria cidade pode se tornar um risco de vida.

Entre 2006 e 2017, a distância média percorrida por gestantes aumentou de forma consistente. No Centro-Oeste, por exemplo, esse trajeto passou de 73,7km para 104,4km — um crescimento de 42%. Em estados como Mato Grosso, a média praticamente dobrou, saltando de 69km para 132km.

No Norte do país, os desafios são ainda mais extremos. Apesar de apenas 16% das gestantes precisarem se deslocar para dar à luz, as distâncias chegam a superar 290km e 30 horas de viagem. No Nordeste, a proporção é maior: cerca de 36% das mulheres precisam sair das cidades. Isso evidencia dois tipos distintos de barreiras: uma relacionada à centralização dos serviços, outra à extensão territorial e à ausência de infraestrutura.

Bruna Fonseca, pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz, destaca que “há uma distribuição desigual dos serviços de maternidade, com maior concentração no Sul e Sudeste, agravando os deslocamentos nas regiões Norte e Nordeste”.

O preço da ausência

Em milhares de municípios brasileiros, não há maternidades. As gestantes, sobretudo no terceiro trimestre da gestação, são obrigadas a viajar em busca de atendimento — muitas vezes, sem garantia de vaga, transporte adequado ou acompanhamento. No Entorno do Distrito Federal, cinco dos 11 municípios não têm maternidade. Em 2023, a rede pública do DF realizou 12.389 partos de mulheres residentes em Goiás.

Em 2017, a Lei nº 13.484 permitiu que recém-nascidos fossem registrados no município de residência da mãe, mesmo que o parto ocorra em outra cidade. Até então, o local de nascimento — e não de origem — era o que constava nos documentos oficiais. Isso explicava porque cidades sem maternidades passavam anos sem registrar uma única criança nascida ali.

Alyne Pimentel: uma tragédia para não esquecer

O Brasil foi o primeiro país condenado por morte materna evitável. O caso de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, ocorrido em 2002, tornou-se símbolo da negligência institucional. Grávida de seis meses, a jovem negra procurou atendimento médico em Belford Roxo (RJ), mas foi mandada de volta para casa com um remédio. Dias depois, retornou à unidade e, após horas de espera, teve o parto induzido para retirada do feto, já morto. Apesar do quadro grave, Alyne aguardou mais oito horas por uma ambulância. Morreu cinco dias depois, aos 28 anos.

Em 2023, o Ministério da Saúde lançou a Rede Alyne, em substituição à Rede Cegonha, com a meta de reduzir em 25% a mortalidade materna até 2027. A estratégia inclui um investimento de R$ 1 bilhão neste ano e foca, sobretudo, na redução da mortalidade entre mulheres negras — hoje, 50% maior que a média nacional.

Fernando de Noronha: nascer é proibido

Já o caso de Fernando de Noronha escancara os limites impostos pelo Estado às mulheres. Desde 2004, gestantes são obrigadas a deixar a ilha no sétimo mês de gravidez e seguir para o Recife, a mais de 500km de distância, por decisão administrativa. Em 2020, a empresária Alyne Dias Luna se recusou a deixar a ilha, temendo a covid-19. A Justiça ordenou a remoção forçada.

O Ministério Público do Pernambuco explica que a política é mais econômica do que manter uma maternidade local. Mas a professora Bernadete Coelho, da Universidade Federal de Pernambuco, discorda. “Deslocar gestantes dessa forma fere o princípio da integralidade do cuidado. Já é difícil coordenar o atendimento quando os serviços estão no mesmo território. Imagine entre cidades diferentes, a centenas de quilômetros de distância”, aponta.

Em regiões isoladas, o Estado chega de farda

Em localidades remotas, o parto seguro só ocorre graças ao esforço de servidores públicos. Forças Armadas, policiais e bombeiros garantem o acesso de gestantes aos hospitais por vias terrestres, aéreas ou fluviais. Na Amazônia, em áreas alagadas, e também no Sul, durante enchentes, esse trabalho silencioso se repete como ato de resistência institucional.

Mas nem sempre a presença do Estado é suficiente. Em muitos casos, gestantes precisam enfrentar barreiras geográficas, burocráticas ou mesmo legais para garantir o direito ao nascimento digno de seus filhos — e, por extensão, à própria cidadania.

O direito de nascer

Dar à luz é um ato ancestral. Mas tornar-se cidadão reconhecido pelo Estado — com CPF, certidão de nascimento e acesso à saúde, educação, assistência e justiça — ainda é, para muitos, uma conquista tardia. Situação que se agrava entre povos tradicionais, ribeirinhos, indígenas, pessoas em situação de rua e populações de fronteira.

O Correio apresenta agora uma série de reportagens especiais: Caminhos do nascimento. Em formato multimídia, com vídeos, podcasts, textos e webstories, quatro jornalistas contam histórias de mães que, apesar de todas as distâncias — físicas, institucionais e simbólicas —, lutam para garantir aos filhos o direito de chegar ao mundo com dignidade, acompanhada de análise de especialistas e propostas para mudar a realidade.

Expediente

Diretora de Redação

Ana Dubeux

Editora do CB On-Line

Mariana Niederauer

Projeto e produção

Edição: Roberto Fonseca
Reportagem: Jaqueline Fonseca, Aline Gouveia, Raphaela Peixoto e Roberto Fonseca
Edição de vídeos: Benjamin Figueiredo e Pedro Mesquita
Tecnologia: Guilherme Dantas e Kelly Venâncio


© Diários Associados. Todos os direitos reservados. Política de privacidade | Termos de uso