CAMINHOS DO NASCIMENTO
A jornada das mães em busca de um parto seguro nas águas da Amazônia
Na Amazônia, gestantes enfrentam longas viagens em rios e desafios para ter seus filhos
CAMINHOS DO NASCIMENTO
Na Amazônia, gestantes enfrentam longas viagens em rios e desafios para ter seus filhos
A dona de casa Regiane da Costa Mendes, de 26 anos, é mãe de uma menina que acabou de completar 2 meses. Para chegar até o hospital, ela precisou fazer uma viagem de sete horas em uma voadeira, um tipo de embarcação menor e mais rápido que os barcos convencionais de transporte de passageiros.
Regiane mora no Distrito de Calama, no Baixo Madeira, em Porto Velho, e explica que a via fluvial é a única forma de sair do local. Ela enfrentou uma gravidez de risco em função de diabetes gestacional e, com 38 semanas, viajou para realizar uma cesárea na capital do estado. “É desconfortável, porque a gente vai sentado, no calor. Depois do parto, eu fiquei dois dias no hospital e depois fui pra casa da minha cunhada. Passei 15 dias lá, depois voltei pra Calama, mas tive que retornar pra Porto Velho porque minha cirurgia infeccionou e tive que passar mais dois dias internada. Minha bebê ficou comigo”, narrou ao Correio.
Ela conta que conseguiu fazer o parto e a internação na rede particular, graças ao plano de saúde. Mas realizou todo pré-natal no posto de Saúde de Calama. Segundo Regiane, as mulheres que engravidam na comunidade fazem o acompanhamento no posto local. Quando chega o momento do parto são transferidas para Humaitá, no sul do Amazonas, de "ambulancha", um tipo de embarcação adaptada para o transporte de pacientes. Recentemente, uma moradora da localidade precisou desse atendimento mas o veículo hospitalar estava quebrado, a polícia foi acionada para levar a gestante, mas não houve tempo e ela teve o bebê em uma embarcação da PM antes de chegar no hospital.
Regiane reflete que a distância do distrito é um complicador para garantir assistência plena às gestantes que vivem no local. “Aqui é mais difícil a gente ter atendimento, até médico é ruim de vir pra cá, imagina ter essas assistências”, desabafa. Ela afirma que, fora o desconforto, entende que o melhor é fazer o deslocamento e garantir um atendimento completo e especializado. O primeiro filho de Regiane nasceu em um hospital regional na cidade de Extrema, onde ela morava na época. Segundo ela, durante a cirurgia foram deixados pedaços de gase dentro dela e, por um ano e meio, a dona de casa viveu com dores sem saber do que se tratava. Até que em uma tomografia foi descoberta a razão das dores e ela fez uma nova cirurgia para retirar os curativos.
A realidade de Regiane reflete a saga de milhares de mulheres no país, principalmente na região Amazônica onde a população ribeirinha é mais concentrada. O IBGE não dispõe de um censo específico para esse grupo populacional.
Uma importante estratégia de atendimento para a população que vive nessas regiões são as Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF). Tratam-se de embarcações que comportam Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF) e tem todos os equipamentos necessários para atender à população ribeirinha. Essas embarcações adaptadas atuam na Amazônia Legal e Pantanal Sul Mato-Grossense com o objetivo de atender os moradores dessas regiões respeitando a cultura e especificidades, garantindo o cuidado às suas populações como previsto na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).
Segundo o Ministério da Saúde, “as UBSF funcionam 20 dias por mês em área delimitada para atuação, compreendendo o deslocamento fluvial até as comunidades e o atendimento direto à população ribeirinha". Nos outros dias, a embarcação pode ficar ancorada em solo, na sede do município, para que as Equipes de Saúde da Família Fluvial (ESFF) possam fazer atividades de planejamento e educação permanente junto a outros profissionais”.
Os municípios que disponibilizam esse tipo de equipamento público recebem incentivo do governo federal, conforme estabelecido pela portaria Portaria nº 1591, de 23 julho de 2012, assinada pelo ministro Alexandre Padilha. As UBSF devem ser compostas, ao menos, por uma equipe que conte com médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista e um técnico de saúde bucal.
A cirurgiã-dentista e enfermeira Jacqueline Oliveira atua na equipe de gestão da Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF) Abaré. Essa unidade atende especificamente no município de Santarém e amplia seu atendimento para comunidades ribeirinhas dos municípios de Aveiro e Belterra, no Pará. A profissional comenta que esse modelo é essencial para garantir saúde a todas as pessoas, inclusive as que vivem em áreas isoladas.
“A importância das Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSFs) é imensa e multifacetada, especialmente para regiões como a Amazônia. Elas são fundamentais para a universalização do acesso à saúde, rompendo as dificuldades geográficas impostas por rios e florestas, levando atendimento de saúde para comunidades que, de outra forma, teriam acesso extremamente limitado ou inexistentes a serviços básicos. Elas são a ponte entre o sistema de saúde e as populações ribeirinhas e remotas”, reflete Jacqueline Oliveira.
A enfermeira explica ainda que, no contexto do acompanhamento de gestantes, o papel da UBSF é garantir que a mulher tenha acompanhamento pré-natal completo, identificando riscos e assegurando que ela seja encaminhada a tempo para uma unidade hospitalar onde o parto possa ser realizado com segurança.
“Em regiões remotas, o planejamento para o parto é um aspecto crucial do acompanhamento pré-natal, e as equipes das UBSFs trabalham para garantir que as gestantes cheguem a um local seguro para dar à luz. Em casos de urgência obstétrica — onde uma mulher já está em trabalho de parto avançado e não há tempo hábil para o transporte até uma maternidade ou hospital — a equipe da UBSF está preparada para prestar o primeiro atendimento e assistência emergencial, mesmo que o parto não seja o foco principal dos serviços da unidade”, aponta.
Ela afirma ainda que toda a equipe é treinada para lidar com partos de emergência e que a prioridade da equipe é garantir a segurança da mãe e do bebê. “Se o nascimento for iminente, o parto será conduzido na própria UBSF, utilizando os recursos disponíveis para minimizar riscos. Assim que possível, a mãe e o recém-nascido serão encaminhados para uma unidade de saúde de maior complexidade, como um hospital, para receberem os cuidados pós-parto completos e acompanhamento de rotina, especialmente se houver alguma complicação”, afirma.
O atendimento também chega às gestantes em regiões ribeirinhas por meio das Forças Armadas.
Em um dos casos, a equipe médica do Exército atendeu uma gestante indígena do povo Tukano que estava há 18 horas em trabalho de parto. O bebê estava atravessado, o que dificultava o parto. O hospital mais perto estava a 495km e o auxílio da equipe foi fundamental para socorrer a mãe e o bebê.
Os militares seguem no auxílio médico na Região Amazônica permanentemente com pelotões e operações específicas. Em 7 de março, o 4º Pelotão Especial de Fronteira realizou o parto de uma jovem indígena da etnia Baré, na comunidade Cucuí.
A Marinha Brasileira também atua nessas regiões garantindo atendimento para população com o Navio de Assistência Hospitalar (NAsH). Uma embarcação que atua como hospital flutuante no Centro-Oeste e Norte do país.
Essa estratégia existe desde os anos 1980. O primeiro navio desse programa, o NasH Oswaldo Cruz, completou 40 anos no passado. Só em 2024, os NasH atenderam mais de 300 mil pessoas na região Amazônica.
Em julho do ano passado, o NasH Dr Montenegro seguia no rio Catrimani, na Terra Indígena Yanomami, quando os militares da Marinha foram acionados para socorrer uma jovem mãe que estava em trabalho de parto. Médica pediatra, a primeiro-tenente Danielle Costa socorreu a mãe que estava sozinha, deitada no chão, no meio da mata. "Ao chegar lá, o bebê já tinha nascido na terra e a mãe estava sozinha, esperando ainda o nascimento da placenta. Nós a assistimos, ela estava cansada e há muito tempo naquela posição. Comunicamos que íamos pegar o bebê para fazer a higiene e o clampeamento do cordão umbilical da forma mais segura. Higienizamos o cordão, clampeamos e mostramos para ela que íamos cuidar do bebê, trazendo-o para o navio onde fizemos a higiene completa e demos toda a assistência pediátrica, incluindo pesar, medir e testes de triagem possíveis a bordo", relatou a militar.
Na Amazônia, cerca de 16 mil quilômetros de rios são navegáveis e, segundo publicação do jornal Communications, Earth and Environment apresentada ao governo federal em dezembro do ano passado, mais de 60% das comunidades daquela região estão mais perto de um corpo d’água do que de uma estrada.
Assim como nas estradas, não há uma regulamentação sobre o transporte de gestantes em embarcações. Sendo assim, cada empresa determina as próprias regras. O Correio apurou, junto a grandes companhias de viagens fluviais do Amazonas, que a permissão sobre o limite de idade gestacional depende de cada empresa. Uma mulher na reta final da gestação que queira viajar de Manaus a Japurá, por exemplo, precisaria de autorização médica para que haja avaliado do transportador.
Já no trajeto de Manaus a Carauari, a empresa estabelece até 3 meses como um limite seguro. Os municípios amazonenses ficam a mais de mil quilômetros de distância um do outro, e a viagem dura cinco dias. As fontes consultadas pela reportagem apontaram que viagens em avançado estágio de gestação são muito arriscadas para a gestante e para o transportador.
Em viagens turísticas em cruzeiros, as orientações são parecidas e limitam o tempo possível para embarque da gestante. A MSC Cruzeiros, maior empresa do ramo no país, autoriza viagens de gestantes até a 24ª semana de gestação. Na página da empresa, está explicitada a proibição para embarques após essa data e orientam as gestantes que querem viajar.
“As mulheres grávidas devem procurar aconselhamento médico antes de viajar, independentemente da fase de gestação. O transportador não pode, por razões de segurança, transportar mulheres grávidas de mais de 24 semanas à data do desembarque”, afirma a empresa. Além disso, a MSC esclarece que o médico do navio não é capacitado e não dispõe de equipamentos adequados para a realização de partos a bordo.
A fisioterapeuta Jaqueline Mesquita Pereira, de 36 anos, fez uma viagem de cruzeiro no limite possível de embarque. Ela havia acabado de completar 24 semanas e conta que a empresa foi rigorosa em pedir os documentos que autorizavam a viagem. “Se fosse uma semana depois, eu já não conseguiria embarcar. Quanto a isso, eles foram bem criteriosos. Eu estava com uma autorização médica da minha obstetra confirmando quantas semanas eu tinha e que não era uma gravidez de risco. E eles me pediram por várias vezes essa mesma autorização, que era um documento. Só na entrada, no dia do cruzeiro, eu passei por três fiscais em momentos diferentes que me solicitaram essa declaração”, relatou.
Na viagem, que saiu do Porto de Santos com paradas em Buenos Aires e Montevidéu, a fisioterapeuta colecionou boas memórias e lembranças. “O cruzeiro foi maravilhoso. Não tenho que falar de algo que possa ter sido ruim e que tenha sido fora do comum pelo fato de eu estar gestante. Pelo contrário, acho que eu tive até digamos assim, um pouco, algumas regalias. Por exemplo, passei na frente em filas, por ser preferencial. Porque acho que a gestante, na maioria dos lugares, ela é mais bem cuidada”, afirma Jaqueline.
Em todos os meios de transporte as gestantes devem receber atendimento prioritário, conforme previsto em lei federal. Além disso, essas mulheres precisam também de especial atenção de prestadores de serviço, empresários, trabalhadores do que atuam no atendimento ao público, gestores públicos e tomadores de decisão. O direito à vida é um direito fundamental, garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado na Constituição de 1988. Proteger, garantir saúde e todos os direitos fundamentais de quem gera vida é papel de toda sociedade e exige um esforço mínimo de cada cidadão.
Clarisse Cunha Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, reflete que o transporte costuma ser estruturado no trabalho econômico e não considera, de forma relevante, o trabalho e a economia do cuidado. “Todo o sistema é desenhado para atender os horários de pico e os fluxos de deslocamento ligados à atividade econômica formal. Há uma priorização clara da cidade produtiva — a cidade do capital. Porém, existe uma discussão bastante importante sobre a necessidade de também priorizarmos o trabalho reprodutivo. E o que é esse trabalho? É aquele que envolve desde a gestação até o cuidado com as crianças, com os idosos, com a casa — ou seja, com a própria força de trabalho produtiva, garantindo que ela possa continuar existindo e funcionando”, aponta.
A especialista aponta ainda que repensar as estruturas de transporte são essenciais para garantir o direito e uma sociedade mais justa. “Quando falamos do direito da mulher à saúde materna — que, aliás, está previsto no artigo 6º da Constituição, como parte da proteção à maternidade e à infância —, esse direito só pode ser efetivado se houver também acesso ao transporte”, conclui.
Ana Dubeux
Mariana Niederauer
Edição: Roberto Fonseca
Reportagem: Jaqueline Fonseca, Aline Gouveia, Raphaela Peixoto e Roberto Fonseca
Edição de vídeos: Benjamin Figueiredo e Pedro Mesquita
Tecnologia: Guilherme Dantas e Kelly Venâncio
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