O anúncio feito pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF) de que haverá duas mil novas vagas em abrigos de acolhimento para pessoas em situação de rua no Distrito Federal tem levantado novos questionamentos, tanto por parte de instituições que representam essa população, quanto por parte de especialistas, que cobram ações mais específicas. Moradores de regiões como Asa Sul, Asa Norte e Noroeste estão reunidos em um grupo de trabalho denominado Brasília capital segura, para cobrar das autoridades soluções para questões relacionadas ao crescimento da população em situação de rua.
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A Sedes lançou, recentemente, edital de chamamento público que prevê novas vagas de acolhimento para pessoas em situação de rua em abrigos no DF, incluindo a modalidade pernoite, voltada ao acolhimento temporário das 19h às 7h, todos os dias, incluindo fins de semana e feriados. O objetivo do edital é firmar Termo de Colaboração com Organizações da Sociedade Civil (OSC) para prover essas vagas. As entidades têm até dia 27 para entregar propostas. Uma audiência pública será realizada, nesta terça-feira (7/5), com as OSCs com o objetivo de esclarecer detalhes e dúvidas sobre o edital.
O presidente do Instituto Barba na Rua, Rogério Barba, ressaltou que é importante um olhar mais sensível do GDF à população que vive nas ruas. Para ele, não é suficiente colocar as pessoas em abrigos. "É preciso dar oportunidades. Hoje, dividimos as pessoas em situação de rua em três categorias: as que precisam de emprego, as que precisam tratar problemas de saúde mental e as que têm vício em drogas e álcool. Precisamos de políticas diferenciadas", destacou. "Claro que as pessoas também necessitam de abrigo, mas duas mil vagas não são suficientes, uma vez que, segundo o CadÚnico, temos sete mil pessoas em situação de rua no DF (o GDF prevê em torno de 2,9 mil)", acrescentou.
Rogério Barba acredita que é preciso colocar, nos abrigos, profissionais preparados para lidar com pessoas com problemas de saúde mental e que lidam com vícios em substâncias químicas. "Vai ter psiquiatra? Vai ter atendimento diferenciado? Onde será esse pernoite? Será distante do centro da cidade? O governo vai oferecer transporte", questionou. "O maior problema da população em situação de rua é a falta de oportunidade", completou.
A especialista em política social e professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB), Erci Ribeiro, reiterou que, estar em situação de rua não é apenas pela ausência de moradia, pois há uma série de questões a serem consideradas. "Essas pessoas têm demandas diversificadas. Faz-se necessário colocar uma equipe especializada para fazer um monitoramento delas. As pessoas em situação de rua, quando abordadas para que sejam encaminhadas às unidades de acolhimento, muitas vezes se recusam pela dificuldade de construir novos vínculos e pelos desafios de se conviver com diferentes complexidades e vulnerabilidades em um só espaço", analisou.
Grupo de trabalho
Moradores e comerciantes da Asa Norte, Asa Sul, Noroeste e Sudoeste estão organizados em um grupo de trabalho (GT) denominado Brasília capital segura com o objetivo de cobrar das autoridades soluções para problemas relacionados ao crescimento da população em situação de rua. A ideia do grupo é que "o governo providencie estrutura adequada destinadas às pastas que cuidam da questão, para que essas tenham condições de prover dignidade, tratamento e acompanhamento da população que efetivamente se encontre em situação de vulnerabilidade social e, ao mesmo tempo, devolva segurança aos cidadãos que pagam os impostos".
A moradora do Noroeste e integrante do grupo de trabalho Taís Bueno observa que, mesmo após as primeiras ações de mobilização do GDF, tem percebido um crescimento no número de barracas de lona montadas por pessoas em situação de rua no Plano Piloto. "Temos percebido que são pessoas vindas de outros estados para o DF. O GDF precisa de um planejamento para cadastrar essas pessoas e oferecer oportunidades para elas saírem das ruas. O plano precisa avançar. Se continuar como está, a situação vai ficar descontrolada", declarou. "Estamos aguardando respostas da Casa Civil referente à homologação do plano de trabalho do GDF, e vamos seguir cobrando", completou.
Mutirão
O Governo do Distrito Federal (GDF) anunciou, em 14 de março, o Plano Distrital de Acolhimento das Pessoas em Situação de Rua, que tem como objetivo mobilizar secretarias e órgãos do GDF para atuação em eixos como assistência social, saúde, ações de zeladoria (para desobstrução de áreas públicas), cidadania, educação e cultura, habitação, trabalho e renda, produção e gestão de dados.
O Núcleo de Enfrentamento à Discriminação e a Procuradoria Distrital de Direitos do Cidadão do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) produziu nota técnica em que tecem uma avaliação do plano. As considerações do MPDFT foram acolhidas pelo GDF, que informou que será assinado um acordo de colaboração com a própria entidade e com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para que o plano possa ser implementado.
O MPDFT informou, em nota, que as ponderações foram dadas "com base na experiência angariada por meio do diálogo constante com a sociedade civil, movimentos sociais, academia e gestores públicos, bem como em razão de sua atuação cotidiana como agente de fomento e fiscalização dessa política pública, voltada à efetivação de direitos fundamentais de pessoas vulneráveis que vivem nas ruas do Distrito Federal".
Posteriormente à análise, o Ministério Público destacou que foram verificados alguns avanços na política, como o acesso irrestrito da população em situação de rua aos restaurantes comunitários, chamamento público para garantir vagas de acolhimento no DF, ampliação de vagas no Renova/DF e a implementação de uma residência terapêutica. "Mas é preciso avançar muito mais", ressaltou a nota do MPDFT.
Em março, o GDF realizou uma ação de acolhimento de um grupo de pessoas em situação de rua que estavam instaladas em barracas nos arredores do Centro Pop da 903 Sul. Na ocasião, foram ofertados atendimentos sociais e serviços de zeladoria urbana, além de assistência veterinária aos animais de estimação dos ocupantes.
Desde então, a Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal (DF Legal), tem realizado monitoramento da região para evitar que as ocupações se instalem novamente. De acordo com a secretaria, há equipes fixas no local e, durante a noite, são feitas rondas.
Realidade de muitos
Marcelo das Graças Silva, 39 anos, nasceu no Gama, mas mora nas ruas do Setor Comercial Sul há 12 anos, porque se afastou da família, ficou desempregado e caiu no mundo das drogas. "Infelizmente é uma doença que eu tenho, as pessoas julgam, tem preconceito, mas essa é a verdade", admite. "Para sair das ruas hoje, eu acho que precisaria de um emprego, mas perdi todos os meus documentos, o que dificulta correr atrás dos meus objetivos e hoje me viro por meio da reciclagem", disse. "Nesses 12 anos que estou vivendo na rua, a única coisa que posso afirmar é que nada me aconteceu de bom, a autoestima fica lá em baixo", disse.
José Garcia (nome fictício, pois não quis ser identificado), 60, nasceu no Ceará, mas veio para Brasília em 1966 com 2 anos para a então recém-capital do país. A família se estabeleceu na Ceilândia, mas há 20 anos, ele se afastou de todos e decidiu morar nas ruas. O motivo, ele aponta que foi por conta de uma vida "desregrada". "Mas me orgulho de ter feito parte da história dessa cidade, ajudei a construir o Pátio Brasil, meu sangue e meu suor estão aqui", afirma. José tem todos documentos que ficam guardados no Centro Pop e como forma de ter um sustento, lava carros no Setor Comercial Sul. "Eu não me sinto auxiliado pelo governo, a minha vida é essa aqui, sobrevivo lavando carros, mas não gostaria de estar nesta condição ainda mais na minha idade", relata. "O que mais me machuca hoje é o descaso, e os lugares que não cumprem o seu papel, como o Centro Pop, que não tem organização alguma, acaba tendo muita briga por lá", detalha.
Valdenilson Pires, 52, mora nas ruas há 22 anos e aguarda vaga em um abrigo. "Tinham que oferecer um tratamento psicológico e um bom serviço na área da saúde, para ajudar a gente, oferecer uma moradia se a pessoa tem condições de conviver sozinha e longe das drogas. Estou esperando uma vaga no abrigo Centro Pop há três meses. Lá é a maior baderna, muita gente, briga na fila, precisa passar por uma vistoria. Eles não revistam direito as pessoas que estão com bolsa, já vi pessoas com faquinha lá dentro do Centro POP. Aguardo minha vaga no abrigo", conta.
A especialista em Política Social, Erci Ribeiro, salientou que as pessoas que vivem em situação de rua fazem parte de um problema estrutural. "Essas pessoas têm um conjunto de direitos básicos violados, como direito à habitação, alimentação, emprego, transporte. São necessárias políticas públicas mais assertivas para que tais direitos sejam atendidos", reforçou.
*Com Caio Ramos, estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira
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