Nos últimos dois anos, o Distrito Federal teve uma média diária de 35 denúncias de abandono de idosos. O caso de uma mulher de 81 anos e da filha dela, de 52, resgatadas em situação degradante de abandono e maus-tratos, no Setor Leste, Gama, revelam a vulnerabilidade que uma parcela da população vive na velhice. De 2022 para 2024, o número de denúncias aumentou 68%, tendo saltado de 7.693 para 12.932. Os dados são do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Uma velhice sem rede de apoio, suporte institucional ou proteção familiar. Essa é a realidade que muitos idosos vivem no DF. "Quando essa violência acontece no ambiente doméstico, é muito complexo, uma vez que as primeiras violências cometidas são por pessoas muito próximas às vítimas", ressalta a delegada Ângela Santos, da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes contra a Pessoa Idosa (Decrin).
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E essa violência não se limita a casos de abandono físico. Envolve humilhações diárias, desvio de aposentadoria, golpes virtuais, negligência em tratamentos médicos e recusa de cuidados básicos. Em um caso ocorrido em junho, na Asa Sul, câmeras de segurança flagraram um idoso de 85 anos recebendo um soco no rosto dado pelo próprio filho. Ele foi indiciado na última sexta-feira nas penas previstas no Estatuto da Pessoa Idosa, por expor um idoso a perigo e humilhação. Se condenado, poderá cumprir seis anos de reclusão e multa.
A cena chocou e escancarou uma realidade menos visível: nem sempre há uma câmera gravando, e o agressor pode estar ao lado da vítima, dentro da própria casa. Segundo a delegada Ângela Santos, filhos, netos e cônjuges estão entre os principais agressores.
Entre os crimes mais comuns, estão os maus-tratos, abandono e a violência patrimonial. "Uma vez instalada a dependência emocional, abrem-se portas para outras violências, como a física e patrimonial", ressalta a delegada. E, no contexto doméstico, os crimes são ainda mais difíceis de identificar. Quando o agressor faz parte da família, a denúncia raramente parte da vítima, muitas vezes por medo, vergonha ou dependência financeira. Daí a importância dos vizinhos. "Se alguém presenciar uma pessoa idosa sendo vítima de violência, não titubeie. Denuncie", reforça a delegada.
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Brechas
O Estatuto do Idoso garante uma série de direitos: acesso à saúde, à segurança, à dignidade e à convivência familiar. Mas para serem aplicados na prática, é necessário que a informação chegue a todos. "Isso significa informação acessível, canais de denúncia rápidos, fiscalização de instituições financeiras e, acima de tudo, rede de apoio familiar e comunitária. O idoso que não está isolado é mais difícil de ser enganado", afirma o advogado Rubens Pires.
O advogado ainda ressalta que o envelhecimento, por si só, não torna ninguém frágil. Mas a combinação de fatores diversos fatores pode os tornar vítimas de golpes. "O isolamento social, a fragilidade física, dependência emocional e, principalmente, a falta de suporte familiar ou comunitário abre brechas para golpistas", ressalta.
Ele ainda cita uma nova face da violência: os golpes virtuais. "Hoje, o criminoso não precisa bater na porta, basta um celular. E o idoso, envergonhado, não denuncia", lamenta. Rubens também defende ações estruturadas e contínuas, que integrem assistência social, segurança pública e saúde.
"Investir em educação digital para a terceira idade, orientar sobre golpes mais comuns, criar políticas públicas que integrem assistência social, saúde e segurança pública de forma coordenada é necessário". Além disso, o envolvimento da comunidade é vital. A omissão de um vizinho pode custar caro. A delegada Ângela reforça: "Não hesite. A denúncia salva vidas."
Sequelas emocionais
Além das violências física e patrimonial, as agressões podem — e quase sempre começam dessa forma —minar a saúde emocional de pessoas idosas. Tais ações, derivadas de discriminações focadas na idade, invalidam experiências e questionam capacidades cognitivas e afetivas daquele indivíduo, contribuindo para a diminuição da autoestima e a internalização de crenças negativas sobre si.
"Há casos em que se atribui àquele idoso um diagnóstico de demência que sequer se manifestou, situação sempre associada ao estereótipo de incapacidade, na qual se imagina que essas pessoas não consigam viver plenamente e de forma autônoma", explica Isadora Araújo, psicóloga clínica e conselheira no Centro de Referências Técnicas em Politicas Públicas e Psicologia do Conselho Regional de Psicologia do DF.
Segundo Isadora, o isolamento social é maior perigo que pessoas idosas correm, visto que essa condição pode camuflar violências ainda maiores. "Muitos idosos acabam precisando de uma tutela ou de um acompanhamento mais próximo da família, seja por uma questão de desenvolvimento neurológico, seja por estarem com a mobilidade reduzida. E, por vezes, isso leva a um isolamento que mascara indícios de violência psicológica ou agressões ainda piores. É preciso que todos, enquanto comunidade, estejamos atentos", alerta.
Nesse sentido, um dos papéis do acolhimento psicológico é permitir que esse público encontre um espaço de escuta e diálogo. "É importante validar essas vivências e mostrar que a velhice não é fim da vida, mas, sim, uma nova etapa com diferentes potencialidades, inclusive, a de colocar em prática projetos que não puderam ser concluídos na fase adulta", ressalta Isadora. Além disso, as vivências com outras gerações são oportunidade para novas experiências e aprendizados.
Ações
A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) afirma atuar em ações voltadas à prevenção e acolhimento, por meio de programas como o Serviço de Acolhimento Institucional para Pessoas Idosas (Saipi), que hoje conta com 394 vagas.
A pasta afirma que há um processo de expansão da rede previsto para o segundo semestre e reforça que o serviço é voltado para quem não pode mais permanecer com a família, com vivência de situações de violência e negligência, em situação de rua e de abandono, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, sem condições de autossustentabilidade ou de retaguarda familiar (veja mais em Três perguntas para).
