OBITUÁRIO

Guilherme Reis: o palco perdeu uma luz

Artistas, amigos e familiares se despediram do ator, produtor e ex-secretário de Cultura do DF, Guilherme Reis, morto na última quarta-feira. Ele deixa um legado de luta e amor pelas artes na capital do país

Velório foi marcado por emoção e leveza -  (crédito: João Pedro Carvalho - CB/DA Press)
Velório foi marcado por emoção e leveza - (crédito: João Pedro Carvalho - CB/DA Press)

Artistas, familiares e autoridades se reuniram, ontem, para acompanhar o velório do ator, diretor e ex-secretário de Cultura do Distrito Federal, Guilherme Reis, no Teatro Nacional. Um dos nomes mais importantes da cultura da cidade, morreu na última quarta-feira, em decorrência de pneumonia.  

O ex-governador e agora deputado federal Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) destacou a importância de Guilherme Reis para a cultura no DF. "Fiquei muito feliz quando o Guilherme aceitou ser o secretário de Cultura. Ele era um gestor de primeira qualidade. Tocava as coisas com muita seriedade, muita profundidade e muito entusiasmo", disse.

Rollemberg relembrou o primeiro contato com Reis: a peça Saltimbancos, apresentada no Teatro Galpão, agora rebatizado de Teatro Galpão Orlando Brito, parte do Espaço Cultural Renato Russo. O deputado elogiou reformas feitas pelo ex-secretário, entre 2015 e 2018, como as do Centro de Dança de Brasília, Espaço Cultural Renato Russo e Museu de Arte de Brasília (MAB), a inauguração do Complexo Cultural de Planaltina e a criação da Lei Orgânica da Cultura (LOC).

Cláudio Abrantes, secretário de Cultura, considera Reis "um grande nome da cultura, com todas as suas forças e talentos". "Fica este legado (como secretário) de uma entrega plena, sem limitações, sem nenhum tipo de preconceito, sem nenhum tipo de limitação quanto a entrega pela cultura do Distrito Federal", disse. Para Abrantes, Reis foi "uma pessoa muito generosa para ensinar e passar os seus conhecimentos".

Sara Rocha, diretora do Cine Brasília e do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, disse que Reis é "dessas pessoas que têm uma a cada 100 anos". "Foi uma pessoa que tinha um talento para reunir pessoas em torno de muito boas ideias, às quais ele era muito apaixonado. E eu tive o prazer de conviver com ele na Secretaria de Cultura, à frente da coordenação do audiovisual, que foi uma época de ouro para o cinema de Brasília", contou.

Reis foi presidente de quatro edições do Festival de Brasília. Como ator, estreou no audiovisual com o longa O sonho não acabou, em 1982, e participou de outros cinco projetos na carreira: o mais recente foi Sagrado segredo (2009). Em 2016, dirigiu o musical Dentro da caixinha.

Além de ator, diretor e gestor, Reis assumiu o papel de produtor cultural. Iniciou a carreira com duas edições do Festival Latino-Americano de Cultura, na Universidade de Brasília (UnB); e o Temporada Nacional, projeto da Faculdade Dulcina. Em 1995, criou o Cena Contemporânea, festival de teatro internacional que, neste ano, realizou a 26ª edição.

Segundo Michele Milani, coordenadora administrativa do Cena Contemporânea, a morte de Reis é um "grande desafio" tanto para o festival, quanto para a cena cultural do DF. "Graças a eles, a gente não pode deixar de comemorar o sucesso da 26ª edição do Cena Contemporânea, que também celebrou os 30 anos do festival, contando com um público de mais de 15 mil pessoas em todos os teatros de Brasília", comentou.

Legado

Luis Guilherme Almeida Reis, natural de Goiânia, começou a atuar aos 18 anos em Brasília, lugar que o recebeu na primeira infância. Alguns dos trabalhos que marcaram essa trajetória nos palcos foram Os Saltimbancos, O Noviço, A vida é sonho e O Exercício. Como diretor, a estreia de Guilherme Reis se deu com a peça A revolução dos Bichos, em 1980. À época, o ator Murilo Grossi tinha 15 anos e realizou o primeiro trabalho artístico. "A partir daí, comecei a fazer teatro com ele e virei ator. Seguimos próximos, trabalhando a vida inteira. Ele tem essa importância pessoal para mim", ressaltou Grossi.

Mais do que esse impacto na trajetória individual, Murilo Grossi destaca o papel de Guilherme Reis para as artes cênicas e para a cultura do DF. "O Guila é absolutamente responsável pela construção de uma certa identidade brasiliense por meio da linguagem do teatro."

Para o ator André Amahro, um "olhar atento sobre o que nós estávamos fazendo e sobre a produção estética local" definia a sensibilidade de Reis. Criador do festival Cena Contemporânea, Reis foi responsável pela troca e integração entre os teatros brasiliense e nacional. "Isso foi muito importante para a cidade, porque a gente é uma vitrine e precisávamos nos conhecer e nos encontrar com o que se faz pelo Brasil afora", completa Amahro. "O Cena não vai acabar. Ele só parou de trabalhar no trigésimo, mas deixou força para que venham mais 20 ou 30 pela frente", projeta Nathalie Amaral, diretora de produção do Cena Contemporânea. 

As homenagens foram acompanhadas por músicas que faziam parte de uma playlist selecionada por Guilherme Reis. "Certa vez, o convidei para tocar no Criolina Champagne, que a gente fazia junto no Cena Contemporânea, e ele levou uma playlist. Estão aqui essa playlist e outras músicas que ele gostava", disse o DJ Rodrigo Barata. Vozes como as de Angelique Kidjo, Goran Bregovi, Tim Maia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Belchior e Ednardo acompanharam a despedida.

 

Depoimento

Por Luis Guilherme Moreira Baptista, ator

Meme Guilherme Reis
Meme Guilherme Reis (foto: Reprodução)

 

Foi tudo muito rápido, não foi Guila? Outro dia você era uma criança com Culé, Tota, Beto, Bia, pai e mãe em Goiânia; outro dia estava suado e feliz fazendo Saltimbancos com alguns de seus amigos mais irmãos que a vida pôde lhe dar; outro dia estava cuidando de seu filho Gabriel, nascido do casamento com Márcia Sant'Anna; outro dia dirigia Pedro e o Lobo; outro dia começou a fazer o Cena Contemporânea; outro dia cuidava também da sua filha Marina nascida de seu casamento com Márcia Duarte, que trazia a bagagem do Endança a tiracolo e muito mais; outro dia estava criando a Lei Orgânica de Cultura dentro da Secretaria de Cultura do DF; outro dia estava beijando e começando sua relação com Carmem Moretzsohn que lhe deu a vida que você queria; outro dia estava com sua neta Zilah, nome de sua mãe.

Outro dia estávamos aqui, celebrando os 30 anos de uma de suas crias culturais. Todos juntos, sorrindo e celebrando. Hoje você partiu. Não sei para onde. Mas que seja para onde você quis acreditar. Que seja um lugar parecido com o teatro e os lugares sagrados que existem escondidos entre as coxias, e as varas de luz, e as rotundas, e que só quem brinca de deuses e deusas sabe os caminhos que nos levam à esse êxtase.

Que seja uma terra de Bemvirá. Onde você encontre quem queira encontrar, como pai, mãe, amigos, a Bia, o Hugo, e mais os que te abraçaram e beijaram por aqui. Hoje quero dizer que te amo e que sua ausência vai ser dolorida para mim e para muitos.

Em 1983, eu conversei com Iara Pietrickovski numa repartição de fotocópia na extinta Fundação Nacional Pró-Memória (Iphan). Ela me convidou para ir assistir o ensaio de "Pedro e o Lobo". Você dirigia. Que elenco maravilhoso. Citando alguns, Aloísio Batata, Fernando Villar, Nanduca, Françoise, Iara e mais. Virei contra-regra, auxiliar de produção e assistente de iluminação. Ensaiávamos e fazíamos ballet na Norma Lilia e karatê com Iara.

Foi outro dia. Você estava com seu cabelo grande (que cabelo), sua barba grande, sua magreza, seu indefectível cigarro na mão e seu sorriso maravilhoso (que sorriso). Outro dia. Quantas lembranças. Tantas festas. Tantas loucuras. Tantos excessos.

Tanto tantas.

Escrevo aqui de teimoso que sou e por amar demais meus amigos. Acho fundamental história e memórias. Sem isso somos ainda mais voláteis. Acho que pessoas como Iara, Herculano, Valéria, Márcia, Sossô e Carminha, podem e devem escrever um livro sobre você. Sabem muito mais do que eu. Outro dia você fez 70 anos, é sete anos mais velho que eu, em algumas épocas de vida isso é como uma eternidade.

Outro dia nos despedimos do Hugo Rodas, seu diretor e irmão, nosso mestre louco e transgressor.

Outro dia, como se fosse agora. Outro dia, no fim do ano passado, eu criei um troféuzinho de madeira com uma chinelinho velha, o troféu Remanso. O grupo, sua família de amigos, te ofertou.

Outro dia eu atuava e produzia com outros o grupo Vidas Erradas, anos 1980, dirigido por meu irmamigo Fernando Villar e ajudamos a produzir uma cerimônia-espetáculo no Teatro da Escola Parque. Para sua despedida Guila. Você estava indo para a Bahia, novos ares, velhas apostas, velas a postos.

Você já era uma unanimidade entre todos. De Liga Tripa a Renato Vasconcelos, de Renato Matos a Asas e Eixos, de Rênio Quintas a Aborto Elétrico, do Pessoal do Beijo ao Udigrudi, de Dois ao Absurdo aos Mamulengos, de Yara de Cunto a Cristina Roberto, de Planaltina ao Gama, de Hermuche a Ralph Gehre, de Dulcina a UnB, de João Antônio a B de Paiva, de Abujamra a Rodas, de Pedrancini a Gê Martú, de Seu Teodoro a Gog, de Alexandre Ribondi a Dimer Monteiro, de Cinema a Dança, de Dança a Teatro, de Teatro a Vida.

Outro dia, em 1995, você entra na minha salinha na Fundação Cultura do DF, eu era assessor de Teatro, e pediu pauta, apoio e recursos para o primeiro Cena Contemporânea. Claro que sim. Claro que Cena. Você já era gigante e continuava doce. Nilson Rodrigues te respeitava e te admirava muito. Pedro Tierra também. Claro que cem outros também. Claro que também os mil grupos que você apoiou, das dez mil cenas que estimulou, dos milhões de encontros que você forjou.

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Outro dia você era o secretário de Cultura, e fez muito, fez o que pode, mesmo que possamos achar que devia ter feito mais. Você era respeitoso, ético e sensato. Você criou com sua equipe as bases do FAC, que ajuda a tantos hoje em dia. Só isso já vale a medalha do Mérito Cultural que você mais que merecidamente recebeu. Recebeu outro dia. Numa tarde chuvosa de Brasília.

Você, como secretário de Cultura, esteve na abertura da exposição fotográfica do Projeto Revivendo Êxodos, que coordenei por 21 anos, na Biblioteca Nacional, em 2016. Discursou com sua eterna alegria e foi generoso como sempre. Meus alunos que nunca tinham ouvido um secretário de cultura, se apaixonaram. Fotografaram você e fizeram um meme com você e eu. Amo de paixão essa brincadeira. Você riu como sempre, agradecendo e acolhendo.

Outro dia, como se fosse uma gargalhada, éter-na-mente. Outro dia estávamos aqui juntos rindo, lembra Guila!? Hoje você partiu. Todos ficamos tristes ou mais que tristes. Todos te celebram, hoje e sempre. Nós, família de amigos, te amamos demais. Carmem te ama como uma estrela supernova. Eu te amo Guila. Outro dia, como se fosse sua leveza.

Outro dia, como se fosse sempre. Outro dia a gente se encontra.

 

*Estagiários sob supervisão de José Carlos Vieira

 


  • Carmem Moretzsohn (viúva de Guilherme) abraçada a Claudio Abrantes (secretário de Cultura do DF)ao lado de Luiz Guilherme Reis (irmão de Guilherme Reis)
    Carmem Moretzsohn (viúva de Guilherme) abraçada a Claudio Abrantes (secretário de Cultura do DF)ao lado de Luiz Guilherme Reis (irmão de Guilherme Reis) Foto: João Pedro Carvalho - CB/DA Press
  • Apreciadores do Cinema dão o último adeus a Guilherme Reis
    Apreciadores do Cinema dão o último adeus a Guilherme Reis Foto: João Pedro Carvalho - CB/DA Press
  • Meme Guilherme Reis
    Meme Guilherme Reis Foto: Reprodução
  • Maria Lucia Verdi consola Carmem Moretzsohn em velório de Guilheme
    Maria Lucia Verdi consola Carmem Moretzsohn em velório de Guilheme Foto: João Pedro Carvalho - CB/DA Press
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postado em 26/09/2025 04:00
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