
Dados da Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) revelam que as pessoas atendidas pelo órgão reportaram menos violência policial, mas, em contrapartida, dispararam os pedidos para que a conduta dos agentes da lei não seja investigada formalmente. Violação de integridade moral com injúrias, lesões corporais e vias de fato são as denúncias mais recorrentes contra policiais recebidas pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). O Correio ouviu especialistas que apontaram causas e consequências da não apuração de tais condutas.
De acordo com o relatório da DPDF, no primeiro semestre de 2024, 15,88% dos defendidos em situação de flagrante apresentados às audiências de custódia relataram terem sofrido violência policial. Em 2025, o percentual caiu para 13,71%. Por outro lado, em 2024, 58,36% dos defendidos não desejaram apuração da conduta policial. Em 2025, esse percentual disparou para 90,95%.
Segundo o defensor público e coordenador do Núcleo de Audiências de Custódia e Tutela Coletiva da DPDF, Alexandre Fernandes Silva, os números mostram que há uma descrença em relação aos resultados de apurações referentes à violência policial. "O fato de não haver grandes responsabilizações decorrentes de denúncias oriundas de audiências de custódia faz com que haja uma desconfiança nas instituições que apuram violência policial", diz.
Para o defensor público, isso mostra uma falha na política pública de prevenção, análise e combate de atos abusivos e enfraquece o Estado Democrático de Direito. "Eu diria que a responsabilização é conjunta, inclui também a Defensoria e o Ministério Público. É preciso fortalecer a ideia de que o policiamento é algo gestado para a comunidade e pela comunidade. É preciso fortalecer as políticas públicas de prevenção, análise e combate de atos violentos por parte das polícias", comenta Fernandes.
Ele explica que a Defensoria atua no sentido de incentivar as denúncias. "A oitiva prévia da audiência de custódia que fazemos com os defendidos tem o objetivo de colher relatos. Temos um protocolo de controle interno para que os dados sejam investigados", explica. "Na prática, vemos que a maioria dos casos de violência policial são decorrentes de policiamento ostensivo que incide sobre crimes de rua. Portanto, incidem sobre pessoas que estão em uma maior situação de vulnerabilidade", observa.
Segundo análise do professor de direito penal do Ibmec Brasília Tédney Moreira, os dados colocam a violência policial no Distrito Federal como um dos graves problemas do sistema de justiça criminal a serem enfrentados.
"O aumento da sensação de insegurança dos denunciantes de procurarem os órgãos adequados correcionais pode ser justificado por conta de uma falta de percepção coletiva dessa punição dada aos agentes de segurança pública violentos, fazendo com que as pessoas que foram vítimas dessas violências se sintam eventualmente ameaçadas de algum tipo de retaliação", avalia. "É preciso pensar uma segurança pública que seja feita não com base na violência institucional, mas que busque, de fato, garantir que seja cumprida a lei sem nenhum tipo de abuso de autoridade", acrescenta.
A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) afirmou, em nota, que "toda e qualquer denúncia de violência imputada a servidores da instituição é tratada com seriedade e rigor". Segundo a corporação, a apuração interna cabe à Corregedoria-Geral, em processos que garantem "amplo direito de defesa e mecanismos de responsabilização sempre que constatadas irregularidades".
A PCDF destacou, ainda, que mantém canais permanentes de escuta e acolhimento da população, como a Ouvidoria e, mais recentemente, a Ouvidoria da Mulher, criada em agosto de 2025. A iniciativa, considerada inédita, tem como objetivo "aprimorar o atendimento e a escuta das demandas relacionadas aos direitos das mulheres".
A corporação reforça o compromisso institucional em fortalecer a transparência e o atendimento ao cidadão. "A Polícia Civil segue comprometida em assegurar condições dignas de atendimento nas unidades, fortalecer os mecanismos de transparência e promover a confiança da sociedade por meio de ações contínuas de aprimoramento institucional", afirma.
Caminhos
O defensor Alexandre Fernandes acredita que deve haver uma mudança de cultura institucional. "O policiamento comunitário tem de ser resgatado. Precisamos pensar a polícia como um serviço de suporte à população, em vez de pensar em policiamento ostensivo apenas com caráter repressivo", salienta. "A segurança pública também envolve a segurança de direitos. É preciso haver uma escuta ativa da população e uma participação maior das comunidades no desenho de laços de confiança com as polícias", sugere.
O sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Edergênio Negreiros Vieira destaca que a queda drástica no desejo da população em formalizar denúncias contra a violência policial é um reflexo direto da ruptura de confiança nas instituições. "Vemos um tecido social corroído, instituições que deveriam garantir a segurança sendo questionadas e uma perda de legitimidade, que se expressa na falta de vontade da população em denunciar", afirma.
Segundo Vieira, a descrença da população tem relação tanto com a percepção de impunidade quanto com o medo de represálias e a percepção de ineficácia do sistema. Ele cita dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que apontam que, em 2024, as mortes em decorrência de intervenção policial representaram uma fatia maior das mortes violentas no Brasil. "Em alguns estados, essa proporção supera os 20%. Isso mostra que há um padrão de letalidade policial consolidado e, muitas vezes, reforçado por escolhas institucionais e políticas que ainda reproduzem a lógica do confronto, do 'bandido bom é bandido morto'", cita.
O professor lembra que pesquisas de opinião confirmam esse cenário: "O Datafolha apontou que 51% dos brasileiros têm mais medo da polícia do que confiança nela. Esse medo é maior entre mulheres, pessoas negras e de baixa renda. Essa interseccionalidade mostra que a violência policial atinge mais duramente grupos já vulnerabilizados", ressalta.
Para reverter o quadro, Vieira defende a adoção de medidas concretas de controle e transparência. "É preciso fortalecer o papel do Ministério Público, das corregedorias externas e independentes, investir em câmeras corporais, criar canais de denúncia anônima e ampliar a participação da sociedade civil nos conselhos de segurança. Sem radicalizar a democracia e aumentar o controle social sobre as instituições policiais, dificilmente veremos uma mudança estrutural", frisa.
O pesquisador lembra que experiências internacionais podem inspirar o Brasil. "É preciso apostar na transparência e na vigilância cidadã. Países que implementaram mecanismos como as bodycams não apenas reduziram abusos, como também protegeram agentes injustamente acusados. Resistir a essas medidas significa corroer ainda mais a própria instituição policial. O desafio é construir uma política de segurança verdadeiramente cidadã, que não se baseie no espetáculo do confronto, mas na inteligência e na preservação da vida", conclui.
Reforço
Ouvidor do MPDFT e promotor de Justiça Militar, Flávio Milhomem anunciou, em primeira mão, para o Correio, que o controle da atividade policial vai ganhar dois reforços importantes no Distrito Federal. Neste mês, será lançado um canal de denúncia especializado para combater a violência policial. Além disso, um grupo de trabalho vai discutir qual será a forma mais eficaz de coletar e armazenar as imagens das câmeras corporais que serão usadas pelos policiais.
O documento pode virar uma recomendação às forças de segurança. Sobre o canal de denúncia, ele será o primeiro do tipo em nível estadual — no caso do DF, distrital — no Brasil e busca enfrentar o problema da subnotificação e dar voz à população. A partir dele, o órgão começará a estruturar dados sobre o tema.
"Faremos uma audiência pública e, logo após, lançaremos o canal que funcionará por meio da Ouvidoria do MPDFT. A meta é garantir acesso fácil à comunidade, permitindo que os responsáveis pelo controle externo da atividade policial coletem dados para nortear políticas públicas", adianta.
Câmeras corporais
Além de acompanhar o processo de aquisição das câmeras corporais, o MPDFT vai formar um grupo de trabalho e elaborar um documento sobre o posicionamento do órgão a respeito da metodologia de capacitação e armazenamento das imagens.
"Há um entendimento de especialistas de que a forma mais eficaz é a filmagem 24x7. Mas há um temor, por parte dos policiais, de que qualquer conversa trivial seja usada contra eles", comenta Milhomem.
Para o ouvidor, é fundamental que o MPDFT firme um entendimento sobre qual será a melhor forma de captação e armazenamento das imagens, de maneira que as gravações possam ser usadas de forma eficaz nos processos judiciais. "Esse documento vai nortear a ação do MPDFT e, se necessário for, pode virar uma recomendação às forças de segurança", antecipa o promotor.
Denúncias
Entra no ar, no dia 29 de outubro, um canal exclusivo para denúncias de violência policial. A iniciativa é do MPDFT, por meio da Ouvidoria do órgão. "A ideia de criação do canal específico para enfrentamento da violência policial é uma tentativa de aprimorar uma atribuição constitucional do MPDFT, que é o controle externo da atividades policial", explicou o ouvidor Flávio Milhomem. "Nossa intenção é dar voz ao cidadão e colher dados que permitam identificar aumento ou redução no número de ocorrências envolvendo violência policial", completou.
Ao Correio, o chefe do Estado Maior da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), coronel Rômulo Palmares, disse que a corporação prende, em média, 10 mil pessoas em flagrante por ano e atende a cerca de 150 mil chamados no telefone 190. "A PMDF realiza programas sociais, atendendo mais de meio milhão de pessoas da comunidade. Programas que envolvem educação ambiental, educação de trânsito, artes marciais, futebol", citou.
Sobre o canal de denúncias, o coronel considera ser algo positivo. "É uma oportunidade de a gente ouvir a sociedade, ouvir os anseios, as reclamações e, por consequência, ter a oportunidade de melhorar cada vez mais o nosso trabalho e atender melhor à nossa sociedade", afirmou.
Saiba Mais
Mila Ferreira
RepórterJornalista graduada pelo IESB e pós-graduada em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC-RS. Experiência como roteirista e assessora de comunicação pública e corporativa. Repórter na editoria de Cidades do Correio Braziliense
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