Insegurança

Pessoas em situação de rua são maioria das vítimas de homicídios no Plano Piloto

Dados de 2023 e 2024 são da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). Especialistas comentam sobre vulnerabilidade, preconceito e desumanização

Atualmente 3.521 pessoas vivem em situação de rua no DF -  (crédito:  Minervino Júnior/CB)
Atualmente 3.521 pessoas vivem em situação de rua no DF - (crédito: Minervino Júnior/CB)

A vulnerabilidade de quem vive nas ruas do Distrito Federal tem refletido de forma alarmante nas estatísticas criminais. Entre 2023 e 2024, 73% das vítimas de homicídios registrados no Plano Piloto eram pessoas em situação de rua, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). O mesmo grupo também aparece com destaque entre os autores de assassinatos: 60% dos homicidas identificados nesse período estavam em condição de rua. No total, 15 homicídios consumados foram contabilizados nesses dois anos, e, em mais de sete em cada dez casos, houve envolvimento direto de pessoas em situação de rua, seja como vítimas ou agressores. 

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A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF) estima que o Distrito Federal tenha, atualmente, 3.521 pessoas vivendo em situação de rua, de acordo com o estudo mais recente do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF). A pesquisa mostra que a maior concentração está no Plano Piloto, com 897 pessoas (25,5%), seguido por Ceilândia (719), Taguatinga (307) e São Sebastião (255).

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Em agosto, o impacto desse cenário foi sentido de forma trágica quando uma sequência de crimes violentos deixou um rastro de medo em Ceilândia. Em menos de oito horas, ao menos cinco ocorrências com características semelhantes foram registradas em diferentes pontos da região. As vítimas — em sua maioria, pessoas em situação de rua — foram atacadas com golpes de faca durante tentativas de assalto. 

 

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Integração

De acordo com o professor de Direito do CEUB e especialista em segurança pública, Antônio Suxberger, é comum que parte da população associe, de forma equivocada, o risco de violência à presença de pessoas em situação de rua. Suxberger explica que os crimes contra essa população decorrem tanto da exposição nas ruas quanto de fatores sociais mais profundos, como o preconceito e a desumanização.

Ele observa que há dois tipos principais de violência: aquela que ocorre entre pessoas em vulnerabilidade, geralmente motivada por conflitos de território ou disputas patrimoniais, e a violência dirigida especificamente contra essas pessoas. "Nesse último caso, são comuns situações de disparidade entre agressor e vítima", destacou.

O especialista também chama atenção para a necessidade de integração entre as áreas de segurança e assistência social. Embora existam protocolos e programas específicos, como o "Pés na Rua" e a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, Suxberger avalia que ainda há desafios para garantir cobertura ampla e contínua dessas ações. "A integração é necessária, mas depende da priorização dessas políticas e da redução das desigualdades sociais — uma das chagas mais graves do país, que se reflete diretamente na violência sofrida e praticada por essa população."

 

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Desigualdade

Para a professora Maria Elaene Rodrigues Alves, do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB), a situação é reflexo direto das contradições sociais do Distrito Federal. "O aumento da população em situação de rua é expressão das contradições estruturais do capitalismo brasileiro.

"Desde 2016, com o aprofundamento da crise e das políticas de austeridade, o mercado de trabalho se tornou mais informal e instável. Muitos que viviam em quitinetes ou ocupações foram despejados. A pandemia agravou esse quadro, e a retomada econômica não alcançou os mais pobres", avalia.

Quando questionada sobre os casos de violência envolvendo pessoas em situação de rua, Maria Elaene é enfática: a maioria é vítima, e não autora. "Os crimes que ocorrem entre essas pessoas devem ser compreendidos dentro da lógica da sobrevivência, e não da criminalidade. A ausência de políticas públicas, o desespero pela comida e pela proteção fazem com que pequenos conflitos ocorram, mas o aumento de assassinatos contra essa população é alarmante."

Ela também aponta falhas na articulação entre as áreas de segurança pública e assistência social. "O que se vê, muitas vezes, é uma atuação repressiva, com recolhimento forçado e violência institucional. É possível garantir proteção sem criminalizar, desde que se adote uma lógica de mediação e cuidado. Assistência social não é polícia; é política de Estado voltada à cidadania", diz.

 

Ações

Diante do aumento da população em situação de rua no Distrito Federal e da escalada da violência envolvendo esse grupo, a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF) afirma que tem intensificado ações de acolhimento e reinserção social. Apenas em 2024, os Centros Pop Brasília e Taguatinga realizaram 24,8 mil atendimentos, enquanto em 2025, até o momento, foram 18,5 mil. 

Entre as ações emergenciais, a secretaria cita o abrigo provisório contra o frio, que funcionou durante dois meses no ginásio do Centro Integrado de Educação Física (Cief), na Asa Sul, com mais de 6,6 mil acolhimentos. Outro destaque é o Hotel Social, inaugurado em julho, que já registrou mais de 16 mil pernoites desde a abertura.

A Sedes também informa que as pessoas em situação de rua são inseridas no Cadastro Único (CadÚnico), sistema federal que permite o acesso a políticas sociais e benefícios, e que esse registro é realizado de forma permanente nas unidades socioassistenciais, como os Centros Pop, Cras e Creas. Além disso, a pasta reforça que mantém ações conjuntas com outras secretarias — como Saúde, Segurança Pública e Direitos Humanos — no âmbito do Plano Distrital para a População em Situação de Rua, com o objetivo de criar vínculos, prestar atendimento e acelerar o processo de saída das ruas, especialmente no caso de famílias com crianças.

Entre as iniciativas mantidas pelo governo estão o acesso gratuito aos 18 restaurantes comunitários do DF, o abrigo emergencial contra o frio, e o acolhimento com pernoite no Hotel Social, que oferece banho quente, duas refeições e transporte gratuito a partir do Centro Pop Brasília. O local também aceita animais de estimação, uma demanda frequente entre pessoas que vivem nas ruas.

Segundo o subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do DF, Marcelo Portela, as pessoas em situação de rua enfrentam uma realidade de “vitimização extrema”, marcada por conflitos, vulnerabilidade e falta de acesso à cidadania básica. Ele explica que, além de serem vítimas de estigmas e preconceitos, essas pessoas estão mais expostas a riscos simplesmente por permanecerem em tempo integral nas vias públicas. “Não raramente, acabam se envolvendo em conflitos interpessoais entre os próprios pares, agravados pelo consumo de álcool e drogas. Alguns criminosos também se infiltram entre essa população, o que aumenta o potencial de violência”, pontuou.

Portela destacou que a maioria dos crimes graves cometidos entre pessoas em situação de rua envolve o uso de armas brancas, como pedras, pedaços de madeira e, principalmente, facas. Ele acrescenta que a identificação dos envolvidos é um dos maiores desafios das investigações, já que muitas vítimas e autores não possuem registro civil. “A população de rua costuma se tratar por apelidos, e muitas dessas pessoas sequer têm identidade, o que dificulta a atuação das forças de segurança e o acesso a direitos básicos”, observou o subsecretário.

O subsecretário reforçou a importância de integrar políticas de segurança e assistência social para enfrentar o problema de forma efetiva. Segundo ele, o compartilhamento de cadastros entre órgãos e o incentivo à identificação civil são medidas fundamentais para reduzir a vulnerabilidade desse grupo. “A chance de uma pessoa nessa condição ser assassinada na região central de Brasília é 2.300 vezes maior do que a de alguém com residência fixa. É um dado alarmante, que mostra o quanto ainda precisa ser feito para proteger essa população”, concluiu.

 


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postado em 25/10/2025 03:00
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