
Com uma trajetória marcada por interpretações de forte carga emocional, como na pele do protagonista Ubaldo da série “Cangaço Novo”, sucesso do Prime Video que escancarou o sertão ao streaming em nível internacional, Allan Souza Lima prepara seu retorno à cadeira de diretor. E não será com qualquer projeto: em 2026, ele iniciará as filmagens de “Poeta Bélico”, seu primeiro longa-metragem ocupando a posição, rodado inteiramente no Nordeste, berço afetivo do ator, que nasceu no Recife, Pernambuco.
A trama, que se desenrola em um mundo pós-apocalíptico onde todo traço de civilização foi apagado, acompanha a jornada de dois sobreviventes: um Guerrilheiro e um Poeta. Num futuro devastado por pandemias e guerras civis fratricidas, o ódio corroeu as estruturas da convivência a ponto de não restar nem sombra da presença humana. Em meio a esse cenário de aniquilação, um homem violento e obcecado com o passado parte em busca de um sítio misterioso — lugar cuja importância só ele conhece. No caminho, encontra outro homem: pacífico, desarmado, que carrega na memória as canções e os versos de um povo extinto.
Entre alianças improváveis e conflitos inevitáveis, ambos atravessam um mundo em ruínas enquanto discutem a própria essência do que se conhece por “humanidade”: “É um filme distópico, pós-apocalíptico. Uma história que fala do que restou da humanidade. Em tempos como os que estamos vivendo, pós-pandemia, guerras, tensão social, o que me motivou foi pensar: o que sobra do humano quando a civilização colapsa? O título já carrega esses dois arquétipos — o da guerra e o da espiritualidade. O Poeta e o Guerrilheiro são tensões internas, são pulsões antagônicas em movimento”.
Em vez da clássica jornada do herói, Allan opta por estruturar o roteiro sobre a Via Crucis, latim para “O Caminho da Cruz” — série de quatorze quadros que representam as cenas principais do sofrimento de Cristo antes da sua morte: “Dividi a saga em capítulos que simbolizam, em cada etapa, as passagens de Cristo até o Calvário — com seus personagens, seus conflitos e suas dores. Não é um filme sobre religião, mas sobre a existência da humanidade e o que restou dela. E dentro dessa trajetória, do que sobrou da humanidade, ou você mata ou você morre”.
Com duas obras destinadas às telonas no horizonte, sendo elas os dramas “Lusco-Fusco” e “Talismã”, a nova incursão trata-se menos de uma virada artística e mais da continuidade orgânica de um percurso que se constrói há tempos. A proposta, que Allan desenvolve há bastante tempo, amadureceu à margem dos holofotes e agora ganha corpo, verba, espaço e locação: “A primeira vez que eu parei para escrever essa história foi em meados de 2013. Desenvolvi o início do roteiro naquela época, pois queria contar uma trama assim como ator e diretor. Lembro que a primeira coisa que pensei foi de trazer a Via Crucis para dentro dessa narrativa, mas como faria isso? O roteiro inicial ficou parado por algum tempo na gaveta. Anos depois, durante a pandemia, pensei: ‘Por que não trazer aquela história que fala sobre exatamente isso que estamos vivendo?’ — convidei o roteirista Ulisses da Motta para assumir esse roteiro. Conversando com ele, tive a ideia de convidar também meu terapeuta, José Raimundo, que é junguiano e teólogo, para nos ajudar nessa construção, de forma simbólica, trazendo a narrativa das dores dos personagens junto a passagens bíblicas. Foi um trabalho minucioso que tivemos durante um tempo. Esse é um filme que venho estudando durante anos. Estou seguro que posso trazer minha maior potência como artista nessa história”.
Ao contrário de suas experiências anteriores, a produção será conduzida por ele exclusivamente dos bastidores — em frente às câmeras, nomes como Alejandro Claveaux e Renato Góes. A entrega de Souza Lima, desta vez, é total à arquitetura das imagens, à costura dramática, ao invisível que estrutura o visível. Para quem já experimentou a mise-en-scène nos curtas “Ópio” (2013), “Mais Uma História” (2014) e “O Que Teria Acontecido ou Não Naquela Calma e Misteriosa Tarde de Domingo no Jardim Zoológico” (2016), com o qual foi laureado com o Kikito de Melhor Ator no Festival de Cinema de Gramado, a passagem ao longa parece um gesto natural.
“Já há algum tempo venho falando nas redes sobre a minha necessidade de voltar a dirigir, de exercer mais esse departamento artístico. Até antes da pandemia, eu estava vendo o fluxo com que conseguia executar meus trabalhos como diretor — tinha feito um curta-metragem e dirigido uma peça super interessante, que estreou no Teatro de Anônimo, na Fundição Progresso. Chegamos a entrar no circuito de teatros da prefeitura do Rio, mas acabou não rolando porque veio a pandemia, tudo parou e, de lá para cá, minha demanda como ator não me permitiu parar e respirar. Agora, tendo essa oportunidade de voltar a desenvolver, já tenho uma data para filmar esse meu primeiro longa como diretor. Costumo dizer que, como ator, consigo exercer e ‘vomitar’ as dores emocionais do ser humano nos processos de composição de personagem. Já a direção, para mim, revela um lado meu que tem a necessidade de criar, de ser maestro de uma sinfonia, que é o filme. E, para mim, isso é grandioso”.
Ao escolher ambientar essa sua estreia autoral fora do eixo Rio-São Paulo, Allan reafirma não só seu compromisso com narrativas descentralizadas, mas também um gesto de retorno às raízes. Tal como em “Cangaço Novo”, série que tensiona o western clássico à estética sertaneja contemporânea, “Poeta Bélico” nasce de um desejo de representar um Brasil que pulsa à margem da indústria audiovisual.
“A minha grande luta foi entender como poderia condensar tudo isso em um único lugar — é uma questão de logística, de produção. E, desde sempre, eu imaginei que o único lugar capaz de reunir todos esses ambientes — da terra seca à beleza natural de uma praia selvagem — fosse o Nordeste. Só o Nordeste tem essa miscelânea de sertão, de Mata Atlântica, de verde, de terra ocre. Só o Nordeste tem essa riqueza de contrastes. Dentro desse processo, comecei a entender onde poderia rodar o filme. Fui vendo possibilidades no Maranhão, no Piauí, em algumas partes da Paraíba… e acabei condensando tudo isso por uma questão de logística de produção e de pesquisa. Foi um esforço de reunir todos esses elementos — essa narrativa, essa história — na Paraíba, que é um lugar simbólico para mim. E onde, de fato, eu fui abraçado. Cheguei a essa conclusão conversando com os atores, e falei: ‘Cara, é isso. A Paraíba é o lugar’. Foi ali que eu fiz o ‘Cangaço’, foi ali que conheci as pessoas. E é muito bonito também ver como o povo ama o ‘Cangaço’ por lá. É bonito andar na rua e as pessoas reconhecerem o trabalho, porque têm esse bairrismo positivo. Falam: ‘Nossa, você filmou aqui no meu estado!’. Eu girei por muitos lugares do Brasil até chegar ao Nordeste. E do Nordeste, cheguei à Paraíba decidido que era o melhor lugar para eu rodar o longa”, conclui o ator.
Mariana Morais
Mariana Morais
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