
O cinema brasileiro ganhou mais um fenômeno emocional com “Caramelo”, longa que escalou rapidamente ao topo da Netflix ao contar a história de um chef vivido por Rafael Vitti, que recebe um diagnóstico de câncer e vê sua rotina mudar completamente.
O ápice acontece quando o roteiro sugere que um vira-lata de rua adotado pelo protagonista, sem treinamento e meio que “magicamente” induz à descoberta do tumor do jovem.
A relação entre os dois evolui de forma sensível e transformadora, à medida que o cachorro passa a acompanhá-lo em momentos decisivos, ajudando o rapaz a enfrentar o tratamento, o medo e a solidão, enquanto ressignifica o sentido de cuidado, afeto e sobrevivência.
A estética delicada, a narrativa sobre luto e recomeço e, claro, o carisma do famoso “caramelo brasileiro” criaram um combo irresistível para o público.
Mas, enquanto a internet se derrete com cenas fofas e mensagens inspiradoras, uma discussão importante surgiu nos bastidores da área de saúde e comportamento animal.
O filme dá a entender que um cachorro sem qualquer tipo de treinamento formal é capaz de detectar uma doença grave e até circular em ambiente hospitalar sem restrições, algo que especialistas garantem que não corresponde ao mundo real.
Entre esses profissionais está Glauco Lima, treinador reconhecido na área de cães de alerta médico e biodetecção, que acompanha de perto a evolução dessa tecnologia no Brasil.
Sensível ao impacto positivo do filme, mas atento às consequências práticas da ficção, Glauco faz questão de destacar que a representação cinematográfica não pode ser confundida com o trabalho sério feito no dia a dia.
Ao longo de sua trajetória, o adestrador já treinou cães para atender nomes conhecidos do público brasileiro, como Carlos Alberto de Nóbrega, Daniela Albuquerque e Carlos Lombardi, diretor de novelas da Globo, além de outras personalidades da televisão e do entretenimento, reforçando seu reconhecimento e credibilidade na área.
Além disso, Glauco atua há mais de 30 anos como adestrador e já treinou, ao longo de sua carreira, mais de 12 cães de alerta médico em diferentes países.
“O filme é lindo e toca qualquer pessoa que já teve um vínculo forte com um animal. Mas o público precisa entender que detecção médica não é milagre, é ciência. Existem protocolos, amostras, repetição, testes controle e acompanhamento profissional.
Nada do que fazemos é improviso ou intuição do cachorro”, explica. Segundo o especialista, cães treinados para alertar quedas de glicemia, crises neurológicas ou alterações químicas no organismo passam por meses, às vezes anos de treinamento estruturado.
São horas de condicionamento, checagens constantes, análises de precisão e parâmetros rigorosos para garantir segurança tanto para humanos quanto para os próprios animais.
O treinador também comenta uma das cenas que mais incomodaram especialistas: o momento em que o cachorro simplesmente entra no hospital para “avisar” algo ao protagonista.
“Hospitais têm regras de biossegurança. O animal não entra onde quer, na hora que quer. Isso colocaria em risco pacientes, equipes e o próprio cão. Na vida real, qualquer atuação de um animal dentro de uma instituição de saúde é altamente planejada e autorizada”, alerta.
Mesmo com as críticas técnicas, o adestrador reconhece os méritos do longa e acredita que Caramelo abre portas importantes para o debate público: “Se o filme despertou curiosidade sobre o que os cães realmente conseguem fazer, ótimo. Que usem essa visibilidade para mostrar a ciência por trás do encantamento. O vínculo emocional é real, mas o trabalho é muito maior do que a ficção mostra”.
Para além das discussões técnicas, o filme segue cumprindo seu papel emocional com precisão: levantar temas como adoção, resiliência, cuidado e o poder transformador da convivência com animais.
E talvez o maior mérito do longa seja justamente esse, provocar a conversa. A arte emociona, a ciência esclarece, e juntas elas ajudam o público a entender que a relação entre humanos e cães vai muito além da tela.
Para Mariana Ruic, diagnosticada com diabetes tipo 1 aos quatro anos e, posteriormente, com Síndrome de Wolfram, romantismo nas telas não leva a nada, afinal, ela descobriu que transpor obstáculos faz parte do seu dia a dia.
A profissional de marketing de 42 anos encontrou uma nova forma de lidar com os desafios da doença ao contar com a ajuda da Granola, uma Golden de 1 ano e 2 meses, treinada para detectar variações de glicose no sangue.
Feliz, hoje ela vê na vida real a aplicação positiva de um cachorro em sua rotina. Com o olfato até 100 mil vezes mais apurado que o humano, cães treinados como a Granola conseguem detectar alterações químicas no corpo relacionadas às variações de glicose. Quando percebem algo errado, alertam o tutor com sinais específicos.
“A Granola me dá uma patada no joelho quando é hipoglicemia e no pé quando é hiperglicemia. Isso é superimportante, principalmente à noite, quando estou dormindo. Às vezes, a pessoa não acorda e pode até morrer. Ela literalmente salva a minha vida, todas as noites”, fala Mariana emocionada.
Além das considerações técnicas, Glauco acrescenta que sua própria trajetória internacional ajuda a esclarecer por que a ficção, embora inspiradora, pode induzir a interpretações equivocadas sobre o trabalho real.
“Uma visão minha é que o que reforça credibilidade nem é citar os nomes de celebridades aqui do Brasil, é ter tido envolvimento no treinamento de detecção de câncer nos Estados Unidos, e também ter existido a oportunidade de ter envolvimento e ter presenciado o lançamento do filme A Dog’s Journey, do autor Bruce Cameron”, afirma.
O treinador explica que a estrutura do filme americano retrata cães que, de fato, diagnosticam pessoas com câncer, algo baseado no trabalho de cães detectores reais.
Glauco também destaca que parte desse núcleo da história foi inspirado na trajetória da treinadora e pioneira Dina Zaphiris, referência mundial na área. “O filme, na parte de detecção, foi baseado também na história de vida da treinadora e pioneira Dina Zaphiris, que foi a única até hoje a ter realizado pesquisa e ter sido publicada”, relata.
Ele conta ainda que teve contato direto com a especialista: “Dina Zaphiris e eu fizemos um collab, foi quando eu aprendi o método de biodetecção de câncer. Tenho formação em biodetecção de câncer, tenho prova social, vídeos de treinamento”, complementa.
Para o treinador, essas informações são essenciais porque mostram ao público que ele fala com base em conhecimento técnico sólido e que justamente por isso aponta os erros do filme. Segundo ele, o ponto mais importante é reforçar que a ideia de um cão detectar câncer sem vínculo, sem protocolo e sem treinamento é “um grande erro de informação”.
Glauco alerta que, em um país onde esse tipo de trabalho ainda não é culturalizado, a ficção pode educar o público de maneira equivocada. “Para um país que não tem essa cultura, isso acaba sendo uma falha. A informação errada já educa o público errado”, adverte.

Mariana Morais
Mariana Morais
Mariana Morais
Mariana Morais
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