Visão do direito

Ministra Cristina Peduzzi: As relações de trabalho e as plataformas digitais

"O modelo imposto pela CLT como um monolito que absorvia todas as formas de relação de trabalho não é mais adequado a um mundo em que o trabalho é contratado por plataformas, como Uber, iFood, Upwork

Maria Cristina Peduzzi -  (crédito: TST/Divulgação)
Maria Cristina Peduzzi - (crédito: TST/Divulgação)

Por Maria Cristina Irigoyen Peduzzi* — A CLT, em 1943, foi um marco no contexto de transformações políticas e econômicas que levaram à transição de uma economia fundada precipuamente na agropecuária para uma economia industrial inspirada no modelo fordista e de produção em massa.

O mundo mudou desde então. As economias nacionalizadas que caracterizaram o século XX progressivamente se tornaram transnacionais, tornando as relações econômicas globalizadas, constituindo um marco do que Niklas Luhmann, o sociólogo alemão, denomina de 'sociedade mundial'.

O novo cenário exige instituições novas porque a realidade sociológica e econômica é, também, nova. O modelo imposto pela CLT como um monolito que absorvia todas as formas de relação de trabalho não é mais adequado a um mundo em que o trabalho é contratado por plataformas, como Uber, iFood, Upwork. A Inteligência Artificial, com a tecnologia GPT, é capaz de gerar textos consistentes com ferramentas como o ChatGPT e já está revolucionando serviços prestados nas mais diversas esferas do conhecimento, como a medicina, o direito, a economia, a administração, os serviços judiciários, e a vida das pessoas, como se exemplifica com a chamada internet das coisas.

Essa é a Revolução 4.0.

Nesse contexto, surgiram novas formas de contratação, de produção e de trabalho, com ela compatíveis, a revelar que existem sistemas protetivos menos rígidos fora da CLT e do vínculo de emprego. São as relações de trabalho que se produzem na esfera do direito privado e que têm natureza civil ou empresarial, como ocorre com os trabalhadores contratados por meio de plataformas digitais e que atuam como autônomos, sendo titulares de garantias legais e contratuais diversas da CLT.

Sabemos que o trabalho por meio de plataformas digitais possibilita maior autonomia criativa aos agentes para organizar a forma como produzem ou prestam serviços e para gerir o tempo e a remuneração, mas conflitos surgem a propósito da natureza do vínculo estabelecido, se de emprego se autônomo.

A definição da natureza da relação que se desenvolve entre os trabalhadores e as plataformas digitais, em destaque o aplicativo Uber, é objeto de discussões no âmbito nacional e internacional.

A Justiça do Trabalho, preponderantemente, vem admitindo a natureza autônoma da prestação de serviços por meio das plataformas digitais, mas há divergências consideráveis. No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, quatro turmas (v.g.,AIRR-10575-88.2019.5.03.0003, 4ª Turma, Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 11/9/2020; RR-1000123-89.2017.5.02.0038, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 07/02/2020; AIRR-11199-47.2017.5.03.0185, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 31/1/2019), assim como o Superior Tribunal de Justiça (CC 164.544/MG, Rel. Ministro Moura Ribeiro, 2ª Seção, julgado em 28/08/2019, DJe 04/09/2019) decidiram não haver vínculo de emprego entre o motorista e a plataforma digital.

A questão pende de julgamento, no TST, pela Seção Uniformizadora, a SDI1 (ERR 100353-02.2017.5.01.0066, Rel. Min. Maria Cristina Peduzzi).

Entrementes, o E. Supremo Tribunal Federal, após sucessivos julgamentos na linha de entendimento da natureza autônoma do vínculo, reconheceu a repercussão geral da matéria, que irá a julgamento pelo plenário sob o Tema nº 1291 de repercussão geral (RE 1446336), relator o ministro Edson Fachin.

Os precedentes da Suprema Corte consideram os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência para assegurar aos contratantes ampla liberdade de escolha do modo de prestar os serviços, como está expresso na Reclamação 59.795 MG (DJe - 24/05/2023), relator o ministro Alexandre de Moraes, em que se destaca que "a interpretação conjunta dos precedentes permite o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT, como na própria terceirização ou em casos específicos, como a previsão da natureza civil da relação...".

O serviço prestado por meio de plataformas digitais amolda-se perfeitamente à previsão, já que se trata de ajuste de natureza civil, não trabalhista.

Nesse contexto, foi encaminhado ao Congresso Nacional, pelo Poder Executivo, o Projeto de Lei Complementar nº 12/2024, para disciplinar o trabalho no âmbito das empresas de transporte de pessoas, definindo regras básicas e proteção previdenciária.

O PLC preserva a condição de autônomo do prestador de serviços, garantindo-lhe os direitos previdenciários com contribuição reduzida para o trabalhador, proteção de dados, segurança e saúde, como tempo máximo de conexão de 12 horas diárias, remuneração mínima e reajuste, direito à sindicalização e à negociação coletiva, liberdade para decidir sobre o modo e condições do trabalho, além da observância de princípios legais e constitucionais de proteção, como amplo acesso à informação, eliminação de todas as formas de discriminação, entre outros.

Norteiam a discussão os princípios da segurança jurídica, da autonomia da vontade, assim como os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana. Todos promovem a necessária estabilidade nas relações contratuais, garantindo a prevalência do que for ajustado, no contexto da realidade contemporânea e das demandas de uma sociedade cada vez mais tecnológica e digital.

*Ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

 

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postado em 18/04/2024 06:00
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