LITERATURA

Sylvia Plath: relembre o legado da escritora que marcou o século 20

Autora de ‘A redoma de vidro’, Sylvia Plath morreu há 62 anos, mas permanece presente em diversas manifestações artísticas da atualidade

Sylvia Plath escreveu diversos diários e um romance -  (crédito: Domínio público)
Sylvia Plath escreveu diversos diários e um romance - (crédito: Domínio público)

Era um inverno estranho, sufocante, o inverno em que Sylvia Plath decidiu deixar este mundo. Há 62 anos, uma das vozes femininas mais importantes do século 20 legou escritos que ecoam ainda hoje.

Plath cometeu suicídio em 11 de fevereiro de 1963, na noite mais fria do ano, aos 30 anos de idade, mas renasceu como um ícone da literatura feminina.

Sylvia enfrentava transtornos mentais e maus-tratos do marido, Ted Hughes, o que a transformou em um ícone da luta feminista e da poesia. No filme Annie Hall, Woody Allen comenta: “Uma boa poetisa cujo trágico suicídio foi interpretado como ‘romântico’ por uma mentalidade adolescente”.

Escrita

De acordo com o professor de teoria literária da Universidade de Brasília (UnB) Gabriel Pinezi, o que caracteriza a escrita de Plath é uma “verve muito agressiva”, principalmente se levado em conta o contexto em que ela se encontrava, ou “o que se esperaria da voz de uma mulher na época dela”.

“Ela usa muitas imagens de uma certa violência, de uma certa força estética que causa muito estranhamento, porque ela tem um pé, vamos dizer assim, na tradição modernista, que usa uma linguagem muito forte, muito contundente”, esclarece.

Por meio de literatura que traduz pensamentos e angústias difíceis de serem colocados em papel, portanto, a poetisa americana nascida em Boston abusa de palavras que viram cenas e, depois, universos. “Suicídio, como se tornar uma mulher no mundo moderno… são temas que chamam muita atenção do público, que muitas vezes tem os mesmos problemas, lida com as mesmas questões e quer ouvir a voz de alguém que possa falar desse assunto.”

É assim que ela narra, por exemplo, no romance A redoma de vidro, acontecimentos da vida da semi-autobiográfica Esther — “personagem que apresenta muito bem os impasses da mulher da sua própria época” e que conversa com gerações e gerações de meninas e de mulheres até hoje. 

Aos 18 anos, a criação de Plath, assim como ela própria, vai dos subúrbios de Boston a uma prestigiosa revista de moda ao ganhar uma bolsa de estágio em Nova York. A chance profissional parece definir o sucesso da personagem, mas o cenário promissor acaba sendo o gatilho de uma crise depressiva que levaria Esther do glamour a uma clínica psiquiátrica. 

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“A geração da Sylvia Plath é uma geração em que as mulheres estão começando a entrar no mercado de trabalho, então elas estão tendo que lidar com problemas relativos a isso: a demonstração de poder, de capacidade, de ação”, explica o professor. Em Nova York, Esther, como mulher em uma cidade cosmopolita, “tem que demonstrar para as pessoas que ela é capaz de fazer certas coisas, que ela é capaz de viver certas experiências” — o que a faz passar por uma série de sofrimentos existenciais. 

“Uma mulher que realmente agora, digamos assim, está no mercado de trabalho, está vivendo, entre aspas, o que seria a experiência de uma liberdade feminina, ela tem que lidar com o peso dessa liberdade, e pensar: ‘E agora, o que eu faço com a minha vida? Quem eu sou aos olhos dos outros? Como que os outros me identificam? Como que os outros me veem? Como é que eu me torno uma pessoa de respeito nesse mundo?’ É um excesso de carga”, analisa Gabriel Pinezi.

A crise de Esther se espelha e reflete não só em Plath. Gabriel conta que as próprias alunas, décadas depois da trágica morte da escritora, se identificam com os transtornos e delírios descritos por ela, na pele de uma jovem promissora que se vê perdida em confusões emocionais sobre si e sobre o futuro.

“A gente vive numa sociedade que tem muitas demandas em cima da gente, a gente tem que ser perfeito em tudo, especialmente as mulheres: têm que ser lindas, têm que trabalhar, têm que cuidar do filho”, reflete. “No mundo real, a gente não dá conta de ser tudo isso, então fica essa sensação que é típica da melancolia que a Esther sente. De que a marca dela como ser humano é a marca da impotência, é a marca de desejar coisas muito maiores do que a ação dela como ser humano, limitado, é capaz de fazer.”

Por isso, também, boa parte das mulheres que eram, à época, internadas em hospitais psiquiátricos, como foram a personagem e a escritora, simplesmente passavam por impasses comuns ao gênero — como terem o desejo de ser algo que, muitas vezes apenas pelo fato de serem mulheres, não podiam ser. 

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Cenas de tratamento de eletrochoque comuns à época são introduzidas à obra cujo título é uma metáfora à depressão compartilhada pela personagem e pela autora — transtorno que, independentemente de quão bem estivessem na vida, sempre as acompanhou. “Onde quer que eu estivesse”, conta Sylvia por meio de Esther, “fosse o convés de um navio, um café parisiense ou Bangcoc —, estaria sempre sob a mesma redoma de vidro, sendo lentamente cozida em meu próprio ar viciado”.

No tempo de Plath, mulheres assim eram medicadas — “não no sentido de tomar remédio, mas no sentido de os seus impasses, suas dores, seus sofrimentos serem tratados como questões médicas”, conta Pinezi. Nos tempos atuais, elas, por exemplo, “entram na universidade e sentem que têm um monte de coisa para fazer, mas não dão conta de fazer tudo”.

Analogia da figueira

“Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. (...) Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.”

Em meio a várias decisões disponíveis, a personagem Esther se vê incapacitada de escolher apenas uma opção, encantada com tantas possibilidades diferentes. À medida que o tempo passa e a escolha não é feita, as frutas, que representam as possíveis escolhas de vida de Esther, apodrecem e deixam de ser uma opção. 

Assim é a história da famigerada analogia da figueira, um dos trechos mais famosos de A redoma de vidro. Em uma representação da ansiedade em relação ao futuro e do congelamento diante a vida, Sylvia destaca que, ao não escolher, Esther opta pelo próprio destino de angústia. 

Psicóloga da Casa Thomas Jefferson, Patrícia Villa explica que a ansiedade e a depressão são paralisantes e comuns, o que justifica a identificação constante com a analogia proposta por Plath. “A vida sempre nos oferecerá múltiplos caminhos, mas só podemos trilhar um. Só vivemos uma vida, e nunca saberemos se as nossas escolhas foram as melhores ou as mais certas. A ansiedade de um futuro ainda não revelado é normal”, pondera. 

A romantização de transtornos mentais

“A ideia de que eu poderia acabar morta desabrochou com indiferença em minha cabeça, como uma árvore ou uma flor.”

Muitas vezes, os escritos de Sylvia Plath são reverenciados por leitores que romantizam a história de depressão e suicídio da autora. Embora seja importante destacar o diagnóstico e tratamento de condições psiquiátricas, a romantização dessa situação perpetua o mal-gerenciamento de crises psicológicas.

A psicóloga destaca que Plath foi uma mulher sujeitada a uma relação conjugal abusiva, levando uma vida frágil e solitária, cujas obras refletem a angústia de uma mulher obcecada com a morte, sintomas que caracterizam a depressão. “Na obra confessional, Sylvia relata que passou por diversos tratamentos, alguns dos mais violentos. O sucesso do romance veio da coragem de expor conteúdos frágeis considerados como tabu, expondo a condição mental de tantas mulheres da época”, diz Patrícia. 

Embora a leitura possa reforçar um sofrimento emocional, Patrícia argumenta que a escrita é terapêutica para o autor. Caso haja uma identificação com a angústia da personagem, o leitor pode ser auxiliado a entender as próprias emoções e ter ciência de que não está sozinho. “Na literatura como a de Sylvia não cabe romantização”, ressalta a especialista. 

Soma-se à história de Plath os avanços no tratamento de transtornos mentais — o que Patrícia destaca não ser só um estado passageiro ou a tentativa de chamar a atenção de alguém: “Depressão é uma doença séria, que deve ser abordada com delicadeza. O tratamento deve ser a psicoterapia aliado ao uso de antidepressivos.”

Pseudônimo

Quando publicou A redoma de vidro em vida, Sylvia Plath o fez sob pseudônimo. “Ela não quis que considerassem o texto que ela estava escrevendo como algo vinculado necessariamente à sua obra”, conta Gabriel Pinezi. “Então você tem como que uma divisão interna dela, entre a Plath que escreve poesia e a Plath que escreveu esse romance.”

Criança prodígio, Plath publicou o primeiro poema no jornal Boston Herald aos 8 anos de idade. Aos 18, entrou para uma faculdade de artes para mulheres, cuja revista interna editou; e, como a personagem a que deu vida, ficou um mês em Nova York como editora convidada de uma publicação feminina.

Foi durante o período da universidade que a autora foi diagnosticada com depressão. Muitas das experiências e perturbações que ela empresta a Esther foram de fato vividas, inclusive o tratamento de choque e os seis meses que passou sob cuidados psiquiátricos após a primeira tentativa de suicídio. 

“A gente sempre se pergunta, quando alguém se mata, se a pessoa não deu os sinais”, reflete Gabriel. “Ao longo de toda a vida, Plath escrevia textos sobre a sua angústia em relação à escrita, angústia em relação ao que ela escrevia, como ela escrevia e se ela ia conseguir escrever a obra que ela tanto imaginava que ela queria fazer. Então, tem vários poemas dela que são sobre essa impotência.”

A impotência, diz o professor, é parte de uma carga de sentimentos melancólicos que faziam com que a escritora se identificasse com a morte. Ele explica que Plath poderia até ter escrito A redoma de vidro e outros poemas como um “pedido de socorro”, mas não acredita que isso delimite o sentido da obra dela.

“As pessoas são ambivalentes em geral em relação ao modo como lidam com as suas ações”, esclarece. “Nos textos da Sylvia Plath você encontra, se quiser, tanto os sinais de que ela ia se matar mesmo, quanto sinais de que ela poderia ter se mantido viva. Então, é do campo da ambiguidade, é do campo da literatura, não tem como resolver isso.”

Referências da atualidade

Sylvia Plath continua viva ao ser referenciada em diversos conteúdos da indústria cultural. A cantora Lana del Rey, que já declarou se inspirar na melancolia da autora, cita Plath em versos da música hope is a dangerous thing for a woman like me to have - but i have it: “I've been tearing around in my fucking nightgown, 24/7 Sylvia Plath; Writing in blood on my walls 'Cause the ink in my pen don't work in my notepad” — “Tenho ficado louca vestida em minha maldita camisola, (lendo ou sendo como) Sylvia Plath 24 horas por dia, 7 dias por semana; Escrevendo com sangue nas minhas paredes porque a tinta da minha caneta não funciona no meu bloco de notas.”

Lana também é autora de uma poesia na qual nega para si mesma o destino trágico de mulheres que enfrentaram situações difíceis: “Sylvia, Marilyn, Violet, Diana. Todas as minhas mulheres loiras que vieram antes de mim. Eu pintei meu cabelo de preto por vocês. Eu virei as costas para aquele lado sombrio” (tradução livre).

No filme 10 coisas que eu odeio em você (1999), a protagonista Kat é vista lendo A redoma de vidro, assim como Lisa Simpson da animação Os Simpsons. Em um episódio da série Gilmore Girls, Lorelai menciona que, apesar do final trágico, Sylvia foi uma boa mãe ao pensar nos filhos e deixar um lanche na cabeceira deles antes de se suicidar. 

Protagonizado por Gwyneth Paltrow, o longa Sylvia - Paixão além das palavras (2003) narra a história da escritora ao estudar em Cambridge e conhecer o marido Ted Hughes. Os dois se apaixonam e se casam, mas Sylvia sofre com a infidelidade do marido e a falta de reconhecimento do trabalho.

  • Casa da escritora em Londres, onde ela morou depois com os filhos após o divórcio
    Casa da escritora em Londres, onde ela morou depois com os filhos após o divórcio CC / Wikimedia commons
  • Sylvia Plath
    Sylvia Plath Domínio público
  • Sylvia Plath
    Sylvia Plath Domínio público
  • Sylvia Plath escreveu diversos diários e um romance
    Sylvia Plath escreveu diversos diários e um romance Domínio público
  • Meme reproduz identificação com a analogia da figueira
    Meme reproduz identificação com a analogia da figueira Reprodução / X
  • Sylvia - Paixão além das palavras
    Sylvia - Paixão além das palavras Reprodução
  • Sylvia Plath e Lana del Rey
    Sylvia Plath e Lana del Rey Reprodução / redes sociais
  • Lisa Simpson lê diário de Sylvia Plath
    Lisa Simpson lê diário de Sylvia Plath Reprodução
  • Capa de A redoma de vidro
    Capa de A redoma de vidro Reprodução / Amazon
  • Lisa Simpson lê A redoma de vidro
    Lisa Simpson lê A redoma de vidro Reprodução
  • Sylvia e Ted em Sylvia - Paixão além das palavras
    Sylvia e Ted em Sylvia - Paixão além das palavras Reprodução
  • Lana del Rey escreve sobre Sylvia Plath em seu livro de poesias Violet Bent Backwards over the Grass
    Lana del Rey escreve sobre Sylvia Plath em seu livro de poesias Violet Bent Backwards over the Grass Reprodução / Lana del Rey
  • Gilmore girls cita Sylvia Plath
    Gilmore girls cita Sylvia Plath Reprodução
  • Em 10 coisas que odeio em você, Kat lê A redoma de vidro
    Em 10 coisas que odeio em você, Kat lê A redoma de vidro Reprodução

Influência na literatura

Pinezi explica que a influência de Plath no mundo das letras é inegável. A ironia e o sarcasmo que cercam a escrita dela são próprias de um universo feminino que veio antes e se estendeu depois. “Ela é uma mulher muito cheia de dúvidas existenciais, mas ela tem uma certa violência em relação a quem está ouvindo, um certo desdém, que é característica de algumas outras mulheres da literatura.”

O professor reforça, porém, que, no campo da crítica literária, a recepção da autora ainda é muito voltada apenas à questão do gênero dela, enquanto deveria abranger o talento com as palavras — não só no que diz respeito ao único romance que deixou, mas a toda a obra de poesia que compõe o acervo póstumo. 

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“Para quem gosta de literatura e de composição literária, de construção de texto, é uma coisa magnífica, um negócio impressionante mesmo, muito bem escrito”, define. “Acho que o fato de ela ter se suicidado também contou para isso, por ser uma história trágica. Eu acho que ela acabou se mantendo viva na memória das pessoas e acabou influenciando várias pessoas.”

 

Bianca Lucca
Lara Perpétuo
postado em 11/02/2025 17:18 / atualizado em 11/02/2025 17:53
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