
No camarim, enquanto ajeita o batom diante do espelho iluminado, Vera Fischer não apenas se prepara para entrar em cena — ela se reconhece e se reinscreve. É um gesto que carrega metalinguagem: a atriz que interpreta uma atriz, que revisita o próprio passado, que desafia o presente e se insurge contra o roteiro invisível imposto às mulheres maduras. A peça O casal mais sexy da América, sucesso de público que ela traz agora a Brasília, não é apenas teatro — é um ensaio vivo sobre o teatro, sobre a televisão, sobre o espetáculo da vida. E, mais do que isso, é um espelho da própria trajetória da intérprete da protagonista, que sempre se recusou a aceitar que sua luz tivesse prazo de validade.
Aos 73 anos, com olhos firmes, voz serena e vitalidade invejável, ela vive Susan White, uma artista esquecida pela indústria que um dia a exaltou. Mas é impossível ignorar que, por trás da personagem, há ecos da mulher que segue altiva, provocadora e disposta a falar sobre beleza, envelhecimento, etarismo e desejo. Uma atriz que se reinventa no palco e pede passagem também no cinema, na televisão, na memória do público — e naquilo que ainda está por vir.
A comédia romântica O casal mais sexy da América é um espetáculo que, com humor e delicadeza, lança luz sobre o etarismo — um apagamento que insiste em calar vozes e corpos maduros, sobretudo os femininos. A peça narra o reencontro de dois antigos astros da televisão que, após décadas longe do estrelato, voltam a se cruzar, agora invisibilizados pela indústria que os consagrou. “Eles eram 'o casal mais sexy da América' nos anos 1990 e, hoje, enfrentam o fato de não serem mais protagonistas — nem na tevê, nem na vida", conta a veterana atriz.
A personagem de Vera é uma mulher que nunca casou, não teve filhos e, agora, sente o peso dessa ausência. Mas a atriz é enfática: a montagem também traz esperança. "Mostra que ainda dá para ser feliz, para amar, para fazer sexo, mesmo depois dos 60. É uma peça esperançosa, que tem muitos níveis: de gargalhadas, de reflexão, de emoção. Acho que o público adora essa peça porque tem tudo isso. E foi por isso que aceitei fazer essa peça, e estou muito feliz", defende ela, com o entusiasmo de quem acredita no que representa.
De musa a matriarca
Vera sabe do que fala. Desde o início de sua carreira, nos anos 1970, quando trocou a faixa de Miss Brasil pelas câmeras de cinema, a descendente direta de alemães nascida em Blumenau (SC) aprendeu a se reinventar em meio aos holofotes. De musa a matriarca, de símbolo sexual a ícone da dramaturgia, ela acumulou personagens marcantes e uma trajetória que atravessa décadas com intensidade e coragem. Basta citar Ana de Assis, a mulher livre e trágica do escritor Euclides da Cunha, que teve um filho com o amante, Dilermando, vivida por Vera em um dos papéis que mais a transformaram. “Me tornei outra pessoa para interpretá-la. Virei morena, usei lentes escuras, mergulhei na dor e na liberdade daquela mulher que viveu algo praticamente impossível, proibidíssimo na época. Foi difícil, mas inesquecível”, relembra a atriz, ao falar sobre a minissérie Desejo, de Glória Perez, que protagonizou ao lado de Tarcísio Meira.
O público também vira e mexe acessa, com interesse e nostalgia, Jocasta, de Mandala, novela assinada por Dias Gomes em uma releitura moderna do épico e mitológico Édipo Rei. A produção não apenas marcou Vera artisticamente, como atravessou a vida pessoal dela: a musa fez par com o Felipe Camargo, que era seu filho — e amante — na trama, e depois se casaram na vida real e tiveram um filho, Gabriel, hoje com 31 anos. "É impossível você fazer uma personagem grega, mesmo nos tempos atuais, sem que isso mexa com você. Mexeu com a minha vida, não é? Foi outro personagem muito brabo de fazer, mas o final foi maravilhoso”.
Mas é com brilho nos olhos que Vera fala de Helena, sua personagem em Laços de família, a heroína amorosa que abriu mão do amor por uma filha doente. "Ela abre mão, porque filho é sempre filho. Eu mesma penso assim, eu abriria mão para os meus filhos, sempre. E depois tem essa coisa da Helena passar por um drama que a filha passou também, que é uma leucemia. Era muita choradeira no estúdio, era muito triste e, ao mesmo tempo, é muito amor nessa novela". E reconhece, sem pudor: "Não tem como eu dizer que não é a minha novela preferida, porque é".
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A beleza ajuda
Uma das mulheres que sempre foram muito admiradas por ser bela, Vera defende que a beleza nunca atrapalha, mas ajuda. "Quando a beleza chega a ponto de dificultar a sua vida, você tem que ter inteligência e criatividade suficientes para fazer com que as pessoas vejam a sua beleza e não a usem, não se aproveitem dela", ensina a sagitariana, que se mantém com a mesma energia e vitalidade que marcaram o auge da sua juventude. "A gente muda muito depois dos 70 anos: engorda um pouco, tem mais rugas. Eu sempre fiz balé clássico, eu faço fisioterapia, eu uso muitos cremes... Eu me cuido muito, e sou muito ativa também", relata.
Apesar do carinho pelo passado, Vera não se prende à nostalgia. O futuro segue lhe interessando — e inquietando. A eterna musa, entretanto, admite: envelhecer não é algo bom. "Não é gostoso nem agradável. Se você parar para pensar, você está se cuidando, você ainda está bonita, mas o audiovisual tem alguns problemas em chamar você, porque, hoje em dia, o que faz sucesso é a juventude", desabafa, reconhecendo que o audiovisual brasileiro ainda tem um longo caminho a percorrer quando o assunto é envelhecimento e representatividade. Ela cita como exemplo a própria Helena, de Laços de família. "Eu tinha 50 anos e era protagonista total. Hoje em dia, uma protagonista desse nível teria 30 anos. Eles estão diminuindo a idade dos personagens. A gente que tem mais idade acaba fazendo papéis de avó, de tia, enfim. Mas isso pode ser modificado. Nós estamos lutando muito para que os veteranos voltem a fazer televisão".
Enquanto isso, ela se reinventa no teatro – território onde a maturidade ainda encontra espaço para existir com potência. E sonha com o cinema. “Fui homenageada em Gramado no ano passado. Ganhei prêmios lá atrás, como o Air France, pelo Amor estranho amor, mas gostaria de fazer mais. Queria que alguém olhasse para mim e dissesse: ‘Essa mulher pode fazer um grande papel’. Estou esperando isso acontecer”, avisa.
Equilíbrio possível
Com a mesma franqueza com que encara os aplausos, Vera também fala da vida fora dos holofotes. Mãe de dois filhos, Gabriel e Rafaela (46), diz ter vivido um equilíbrio possível entre carreira e maternidade. “Sempre viajei muito, fazia novela e teatro ao mesmo tempo. Não fui uma mãe presente como gostaria, mas eles sempre souberam que tinham uma mãe trabalhadora, artista. Nossa relação, hoje, é ótima. São só eles que eu tenho. A gente se vê pouco, mas quando se vê, é sempre uma alegria. E isso é o que conta: qualidade, não quantidade.”
Questionada sobre o que gostaria de deixar como legado, Vera responde com simplicidade e firmeza: “Trabalhei muito. Sempre respeitei os colegas, nunca me intrometi no trabalho de ninguém. Acho que isso é o mais importante. E quero dizer para as meninas que estão começando: leiam livros, vejam filmes, teatro, balé. Arte é tudo. Cultura forma o ator, a atriz. Não basta decorar texto, é preciso entender o mundo. E se tiverem talento, estudem, mas também escutem o próprio instinto. Eu fui autodidata, e funcionou”, conclui a artista que, em cena ou fora dela, continua sendo presença.
Elegante, sincera, incansável — uma mulher que soube atravessar o tempo com beleza, e também com força, inteligência e uma fome de palco que nem as décadas conseguiram saciar. Ah, e sempre sexy.
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