
João Pessoa* — Aos 89 anos, Silviano Santiago fala como quem já percorreu todos os caminhos da literatura e da crítica. Ainda assim, o autor — vencedor do Prêmio Camões, Prêmio Jabuti, Prêmio Oceanos, Prêmio Machado de Assis, entre outros que atravessam décadas de produção intelectual — permanece em movimento e nunca satisfeito. “Porque eu estou vivendo”, justifica. Nesta sexta-feira (28/11), Silviano integra a mesa “A língua como território de cidadania” da FliParaíba 2025.
É dessa inquietação contínua que nasce a leitura sobre a libertação da língua portuguesa: não como metáfora, mas como processo histórico. Silviano retorna a 1975, às independências africanas, para explicar o que chama de “ruptura libertária”: o momento em que a língua deixa de ser apenas herança colonial e passa a existir como criação múltipla, enraizada em territórios diversos.
“Uma língua se torna outra no momento em que ela tem um dicionário e uma gramática”, diz. Sem isso, a língua é apenas fala, não projeto de nação. Por isso, o escritor destaca o impacto de gestos como a distribuição massiva do dicionário brasileiro feita no governo Fernando Henrique Cardoso, definida pelo escritor como um marco simbólico e político.
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Ao falar do Brasil, Silviano localiza a língua literária como campo de disputa desde o século XIX. Ele lembra José de Alencar como o primeiro a escrever em uma língua que já se afastava da matriz europeia; Mário de Andrade, que incorporou ritmos, sonoridades e tradições africanas e indígenas; e Guimarães Rosa, que transformou o idioma em invenção radical. Cada um, diz, abriu portas diferentes no mesmo labirinto.
Mas é o século XX, sobretudo o pós 1975, que inaugura a possibilidade de pensar o português como idioma multicontinental, segundo o escritor. África, Brasil, Portugal, Timor, Goa são, para Silviano, pontos que poderiam formar um circuito literário robusto, mas que seguem isolados. Ele menciona o universo anglófono, com sua sequência de Nobel africanos, e o hispânico, organizado em estruturas institucionais poderosas. Em contraste, a lusofonia não se reconhece como bloco, mas carece de ambição transnacional. “O único Nobel em língua portuguesa é o Saramago. Mas ele já morava na Espanha quando ganhou.”
Silviano acompanha a política brasileira com atenção, recordando momentos de desânimo durante o governo Bolsonaro. Atualmente, sente alívio e vigilância com a prisão que descreve restaurar os limites do país. O escritor enxerga um Brasil que volta a se integrar ao mundo.
Ao falar sobre a própria velhice, Silviano ri da ideia de um escritor desorganizado, caracterizando-se como disciplinado. “Eu acordo às 6h30, tomo café, vou para o escritório e escrevo até o meio-dia.” A rotina foi moldada pela tripla jornada de décadas: professor, escritor, jornalista. Hoje, admite existir efeitos da idade, mas ele segue firme exercitando corpo e mente.
A inteligência artificial na literatura
Ao abordar a adoção crescente de ferramentas de IA, Silviano devolve a questão ao campo subjetivo: “A pergunta que você coloca é para subjetividades. Como é que uma subjetividade pode se enriquecer com a inteligência artificial? Não neutralizando e não esculhambando a curiosidade intelectual.” Para ele, o risco não está no instrumento, mas na perda de interesse.
Esse avanço da subjetividade, conforme o autor, também molda a literatura contemporânea, marcada por testemunhos e experiências pessoais. “A literatura hoje é extremamente subjetiva, ela atende a ser testemunho.” Isso, porém, traz desafios: reorganizar ideias, imaginar o outro e deslocar-se da própria perspectiva. “Há uma dificuldade exatamente de reorganizar as ideias, e aí perde um pouco uma das coisas mais incríveis que a literatura permite, que é você ser e imaginar a vida do outro.”
Silviano cita Machado de Assis para ilustrar outro tipo de subjetividade: crítica, sociológica e politizada. “As grandes questões que ele coloca, exatamente por ser preto, são questões subjetivas, e a mais importante: a do preconceito — que só se pode sentir subjetivamente.”
A análise de Silviano atravessa língua, cidadania, política, subjetividade e chega à IA sem mudar de eixo: tudo depende, para ele, da capacidade de imaginar, de se deslocar e de não perder o sentido de investigação pessoal. O que está em jogo, no fundo, é como cada pessoa decide pensar. E, como em quase toda sua obra, a resposta nunca é técnica, mas sim ética, humana e imaginativa.
*A jornalista viajou a convite da Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba

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