
O Brasil é um país peculiar quando se trata de memes. O artista Ismael Monticelli e a curadora Clarissa Diniz se deram conta disso durante a pandemia de covid-19 e, desde então, passaram a acalentar o sonho de fazer uma exposição em torno do tema. Depois de dois anos de pesquisa, chegaram a MEME: no Br@sil da memeficação, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), um verdadeiro passeio pelos memes brasileiros que mais circularam pela internet nos últimos anos, mas também uma investigação do quanto essa linguagem está instalada na maneira de se comunicar e fazer humor no país. “A gente começou a pensar um pouco sobre essa linguagem e a relevância que tem para o Brasil. Pensar na ideia do meme como um processo, como nós brasileiros pegamos quase qualquer coisa e transformamos em um comentário vinculado ao humor”, explica Monticelli.
A mostra ocupa três espaços do CCBB, incluindo o Pavilhão de Vidro, este inteiramentededicado à política. Em colaboração com o @newmemeseum, um perfil anônimo do Instagram, Clarissa e Monticelli reuniram centenasde memes reproduzidos sobre os mais diversossuportes, incluindo telas digitais, pinturas e fotos, mas também foram além desse fenômenodo século 21 para investigar como a linguagemdo humor construída de forma direta, com base nos acontecimentos cotidianos, e em pílulas aparece na arte contemporânea brasileira.Assim, obras de artistas como Nelson Leirner,Claudio Tozzi, Fúlvio Penacchi, Gretta Sarfaty ebrasiliense Pamella Anderson dividem espaçocom o conteúdo produzido por perfis famososda internet como Blogueirnha, Greengo Dictionary, John Drops, Melted Vídeos, AlessandraAraújo e Porta dos Fundos. “Começamos a olharpara isso com mais atenção e percebemos queé uma produção visual na qual nós todos estamos envolvidos e as instituições não tinham semobilizado para pensar essa linguagem, que éefêmera e compartilhável”, explica Monticelli.
Os curadores não queriam uma exposição que contasse a história do meme, mas queriam abarcar uma grande quantidade de expressões em um conjunto capaz de criar, com o público, uma conexão e uma sensação de familiaridade. “Não haveria espaço nem tempo para contar a história do meme, mas a gente acredita que tem um caráter histórico: é a primeira vez que a gente vê uma grande exposição. Outras menores foram feitas, sobretudo por iniciativa de Victor Chagas, maior pesquisador de memes do Brasil, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)”, explica o curador.
O público vai reconhecer muitas imagens e frases que viralizaram nos últimos anos. Estão lá as mais variadas versões do “alisa meu pelo”, a frase escrita em uma nota de R$ 50 que traz a imagem da onça-pintada, o “sanduíche-iche”, nascido de uma entrevista de uma nutricionista para um telejornal, os bonecos com acessórios criados para cada fato do cotidiano nacional. Mas também há charges de Chico Caruso, programas de Marcelo Tas, pinturas de Roxinha, de Alagoas, panos de prato com frases certeiras e ácidas, instalações, letreiros e até esculturas. “A gente pensa um pouco a ideia do meme antes de chamarmos de meme. Então, a gente começou a olhar para artistas visuais, artistas contemporâneos, e a trazer para esse diálogo do universo da criação de memes”, explica Monticelli. Nas artes visuais, os curadores identificaram diversas afinidades, tanto da linguagem quanto da imagem, e o uso do humor. “Humor e arte sempre passam ao largo da instituição, as instituições nunca pensam essa abordagem do humor, e como é uma coisa tão presente no nosso país, uma forma de enfrentamento político, social e econômico, a gente pensou essa exposição”, diz.
Dividida nos núcleos Ao pé da letra, A hora dos amadores, Da versão à inversão, O eu proliferado, Combater ficção com ficção, a exposição sobrepõe humor e arte com um destaque especial para a política, tema concentrado no Pavilhão de Vidro. “Esse é talvez um dos assuntos mais delicados hoje. E a gente tem esse ponto de partida que é a ideia do circo, o circo político”, explica Monticelli. Nesse espaço, as esculturas dos palhaços entristecidos de Silas Vilela aparecem ao lado de pintura de Fúlvio Pennacchi e desenhos de Chico Caruso. O núcleo também faz referências a diversos momentos da política brasileira, incluindo o personagem Ernesto Varela, o repórter criado por Marcelo Tas nos anos 1980 que ironizava personalidades políticas, e o Bode Ioiô, figura icônica e popular do Ceará, eleito vereador em 1922 em protesto contra os candidatos e tema do enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti, em 2019. Estão lá ainda Jô Soares, com cenas do programa Faça humor, não fala guerra, veiculado pela Rede Globo na década de 1970, e os panfletos Ninguém solta a mão de ninguém, criados por Teresa Nardelli quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva foi preso, em 2018. “O meme é uma linguagem criativa muito brasileira e importante para nós”, constata o curador.
Entrevista // Ismael Monticelli
Quais as particularidades dos memes brasileiros?
Como a gente tem uma presença digital tão forte, durante a pesquisa, observando a produção de memes de outros países, constatamos que, no Brasil, o meme assume muitas formas diferentes, circula no Twitter, passa pelos comediantes, que criam a partir disso. Então observamos que essa condição é muito particular brasileira, somos o país do Whatsapp, temos uma presença digital muito profunda. Crianças entram nas redes sociais antes de saber ler e escrever. E, por isso, a gente pensa também a própria linguagem. A gente acredita que existe uma grande experimentação nessa linguagem visual. É aberta, qualquer pessoa pode fazer, as ferramentas estão aí e não há um padrão que diz isso é meme isso não é. O meme é muito democrático, gregário, por isso é uma linguagem criativa nacional, talvez maior que a arte. E nela, a gente se pensa como Brasil e como sociedade.
Como foi pensada a estrutura da exposição e, sobretudo, como trazer os memes para um universo material, já que eles são produzidos no meio digital?
Não queríamos fazer uma exposição de projeção de telas, não é disso que se trata. Temos uma presença muito forte da cenografia e cada núcleo da exposição é imersivo, como a internet, que faz com que novos usuários sejam absorvidos no espaço digital. São cinco núcleos, um prólogo, um epílogo. O núcleo Ao pé da letra, por exemplo, aborda a revolução da linguagem promovida pelas redes sociais modificando o português e trazendo novas formas de se comunicar, com erros de digitação, abreviaturas. Desenvolvemos diversas formas de mostrar os memes: às vezes impresso como fine art, às vezes por dispositivos. Tentamos trazer o procedimento da memificação também para a curadoria. Para mostrar certas produções, criamos dispositivos que reúnem e demonstram essas criações.
O núcleo de Versão em versão traz assuntos delicados, como machismo e racismo. Pode contar como foi elaborado?
Na internet, a gente se apropria de várias coisas e faz versões que podem ocasionar inversões. Por exemplo, performances de racismo reverso para demonstrar o quanto é complexo e o quão os discursos podem ser preconceituosos. Esse núcleo tem o Museu do Homem na Internet, parodiando os museus etnográficos, e o Museu do Homem do Nordeste, de Oswald de Andrade. Existem tipos masculinos definidos pelo meme na internet, como o esquerdomacho, o heterotop, o farialimer, o red pill. Os memes fazem as criações de modo que a gente entenda que eles estão no mundo. Faz com que identifiquemos essas pessoas no mundo. Através dessa reunião de tipologias de homem, por exemplo, elaboramos vitrines como se fosse um museu etnográfico para cada um desses homens. E temos a TV, que canaliza todos os memes em uma construção textual feita por nós como se fosse uma legenda de museu etnográfico. Tem uma dimensão ficcional, baseada nessa produção e na realidade dessas tipologias masculinas. É como um meme de um museu etnográfico.
E como são tratadas as questões dasaúde mental e das identidades?
O núcleo O eu proliferado aborda o eu nas redes sociais, a performance do eu nas redes, com umadimensão teatral que tem a ver coma busca das identidades. E tem esseoutro lado, que é quando essa busca atua como uma regulação: a gente está sempre sendo regulado pelas redes sociais, pelo comentário doautor, pelo like. A gente trabalha umpouco sobre o que isso causa também em nós, as questões de saúdemental, o coach de autoajuda, todosestão lá. Mas tem um aspecto trágico nesse núcleo. Temos as obrasda Telma Saraiva, uma fotopintoraque, nos anos 1950, estava fabulando sua própria identidade no Cariri, se imaginando como estrela deHollywood, se fotografando comoestrela e fazendo todo um trabalhode pós-produção. E tem trabalho daRegina Vater, Tina América, em queela se imagina de diferentes formasatravés da fotografia.

Diversão e Arte
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