
A possibilidade de que recursos públicos gerados pelo audiovisual brasileiro incrementem o patrimônio das gigantescas, e estrangeiras, plataformas de streaming é a sombra que paira com o projeto de lei que tramita no Senado Federal. Pelo PL do streaming, ou o "PL da Devastação do Audiovisual", que deve ser votado amanhã, como os críticos denominam, há previsão de que a taxação da Condecine (Cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) se limite a apenas a uma alíquota de 4% sobre o lucro das plataformas.
Esse percentual gerou protestos de diretores e produtores brasileiros. "O que está em jogo é a sobrevivência da produção independente do cinema brasileiro, diante do avassalador crescimento do streaming. Principalmente pela recusa (das plataformas) em pagarem pela exploração desse mercado, bem longe do que seria um percentual justo sobre a renda destas", critica o diretor e produtor João Batista de Andrade, com quase 60 anos de experiência no audiovisual.
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O diretor do clássico Doramundo e O homem que virou suco alerta que as empresas estrangeiras camuflam, pelo projeto, o desmantelamento do mercado nacional a um custo irrisório. "Enquanto esperávamos 20% (de tributação), chegaram a contrapropostas ridículas de 2 ou 4%. E ainda preveem a possibilidade de usar parte desses recursos para produções próprias, ardilosamente realizadas por produtoras brasileiras, mas de propriedade delas, as majors", pontua o cineasta, ao falar da nefasta concentração de recursos nas mãos de poucas produtoras, e justo sob curadoria de empresas estrangeiras.
Publicamente, a ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda exaltou a nobreza do ator Wagner Moura (em momento de distinção internacional, pelos prêmios levantados com O agente secreto) de se posicionar contra o cenário que "favorece as empresas internacionais como em nenhum outro país". Num post nas redes sociais, ela demarcou o estarrecimento com o tema: "Para surpresa geral, o projeto de lei estabelece que todas as produtoras, nacionais ou internacionais, podem abater 60% do valor devido (de imposto) se for para produção de filmes feitos no Brasil. De fato o Brasil, além do grande público, tem belos cenários e ótimos atores, mas a indústria que vai crescer e lucrar com isso são as internacionais".
Matheus Peçanha, diretor sudeste da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), endossa o descontentamento e alerta "precedente perigosíssimo", caso a lei seja aprovada, pois ela permite o reinvestimento em produção própria por parte de plataformas. "Hoje, toda a legislação de fomento ao audiovisual no Brasil possui o produtor independente como peça central. Ampliar o fomento público a empresas não independentes é mudar o foco desta política, abrindo um precedente para que, no futuro, investimentos públicos que hoje são restritos à produção independente, como é o caso do FSA, sejam destinados a grandes empresas não independentes", analisa.
Diante de tanto rebuliço no setor, há quem considere o Ministério da Cultura sem postura altiva em defesa da regulação menos nociva. "Vemos algumas poucas reuniões, todas em tom de derrota, enquanto jantares e negociações com os grandes (do mercado externo) são feitas. Consideramos que o MinC não só foi negligente, como também escolheu por este caminho. A regulação existe justamente para ajustar a correlação de forças que existe dentro dos mercados", comenta o presidente da Associação das Empresas Produtoras de Animação (Abranima), Igor Bastos.
Há mais de 10 anos antenado com debates sobre regulação, Bastos tem por base legislações de outros países. Dentro da Câmara dos Deputados, nos moldes do PL, ele cita bons teores de vitória para o mercado como a garantia de uma janela de nove semanas para exibições entre a projeção no cinema e a circulação de uma obra pelo streaming, isso além da obrigatoriedade de uma cota mínima de catálogo (de títulos brasileiros) de 10%, dados ainda assim "bem baixo, quando comparamos com outros países que fizeram a regulação".
"O ponto mais sensível além da alíquota baixa, uma vez que (nos moldes previstos) os streamings terão acesso ao uso de 60% da Condecine (grosso modo, a cobrança sobre a receita bruta das plataformas) em produções, infraestrutura e licenciamento para seus próprios negócios. É uma aberração pensar
que se pode criar uma contribuição em que as próprias empresas escolhem o destino desses recursos. O ideal seria que, pelo menos, 51% (desse montante) fomentassem a política pública nacional", reforça Igor Bastos.
Representante da Diretoria da Associação Paulista de Cineasta, Minom Pinho atenta que o Brasil é o segundo maior mercado de streaming no mundo, em número de assinantes. "Quando comparamos a taxa de tributação — proposto no PL — de míseros 3 ou 4% com a França, que cobra mais de 20% do faturamento das plataformas de streaming, é desesperador pensarmos quanto o montante é acanhado para fomentar o audiovisual num país continental como o Brasil", assinala Minom. Nos moldes em que se encaminha o PL 2331/22, para além da taxa irrisória de Condecine, haverá a permissividade de que 60% dos recursos fiquem sob curadoria das próprias plataformas estrangeiras, ao invés de irrigarem o Fundo Setorial do Audiovisual, a principal fonte de fomento da indústria cinematográfica brasileira.
MinC
A mobilização de entidades do audiovisual em torno do tema levou o MinC a divulgar uma nota pública em que demarca que "o governo do Brasil esclarece que compartilha do compromisso com uma regulação justa, soberana e capaz de fortalecer a produção nacional e independente e a indústria brasileira do audiovisual".
Tida como "prioridade", a pauta teria contado com diálogo junto ao setor e articulação "permanente com o Congresso Nacional". O documento cita união entre parlamentares da base e o setor audiovisual independente em reuniões junto ao relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), com vistas a aprimoramentos de propostas técnicas. Entre conquistas, do projeto inicial do deputado licenciado Paulo Teixeira (PT-SP), mas relatado pelo deputado Doutor Luizinho (PP-RJ), está a cota de tela de 10% para conteúdo brasileiro (numa reserva nas plataformas) e o impedimento de que "originais" possam ser considerados como conteúdo brasileiro independente.
Em articulações públicas, foram apresentadas diretamente ao relator, via MinC, pontos preponderantes nas definições do governo. Entre pontos prioritários estão a garantia de alíquota de 3% de Condecine-streaming, para todos os provedores; a negativa de deduções para reinvestimento na produção de 'originais', com recursos de dedução canalizados para obras brasileiras independentes, e a segurança de uma janela de nove semanas entre a apresentação de uma obra em sala de cinemas e a chegada desta ao streaming.
Menos exaltado no cenário de tramitação do projeto de lei, o cineasta, produtor e distribuidor André Sturm traz um tom moderado e de conformismo ao tema: "O relatório aprovado na Câmara (e em apreciação no Senado) é inspirado na legislação europeia: cria uma contribuição sobre faturamento das plataformas internacionais de VoD (video on demand); cria a possibilidade de elas usarem parte em aquisição de conteúdo brasileiro independente e cria uma cota de conteúdo brasileiro nos VoDs. Tenho certeza de que a lei será aprovada. O projeto que saiu da Câmara é o possível. A luta é para garantir o espaço para a produção independente na lei", destacou.
Outros tropeços
Embora o PL seja ruim em diversos aspectos, na avaliação do cineasta Tiago de Aragão, seja pela baixa alíquota da Condecine e a pequena cota de catálogo nacional (a ser obrigatória, nas plataformas), o maior risco dessa tramitação, segundo ele, é o ataque à noção da obra independente como pilar das políticas de fomento público.
"Ter a possibilidade de recurso público, por meio de isenção, financiar obras não independentes (os chamados originals), financiar infraestrutura de plataforma é muito problemático", alerta. "A possibilidade de as plataformas utilizarem recursos de dedução (de imposto) para comprar a cessão (com transferência) de direitos de uma obra, e não do licenciamento (temporária aquisição, com assegurados direitos para a produtora independente), é outra inovação perigosíssima", lamenta o roteirista, antropólogo e pesquisador de cinema.

Diversão e Arte
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