
Nos últimos dez anos, a luta por direitos das pessoas transgênero nos estados brasileiros tem sido marcada por uma intensa disputa política dentro das assembleias legislativas. De 2015 a 2025, ao menos 664 projetos de lei sobre o tema foram apresentados nas casas legislativas dos 26 estados e no Distrito Federal, sendo que 416 propostas (62,6%) buscam ampliar direitos e 248 (37,3%) pretendem restringi-los. Os dados são de um levantamento inédito realizado pela Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados.
Embora propostas em favor da população LGBTQIA+ sejam maioria, a ofensiva conservadora também se faz presente. No período, 21 projetos de ampliação de garantias foram aprovados, contra nove propostas restritivas que também se tornaram lei. Entre os textos que garantem direitos, destacam-se aqueles que regulamentam o uso do nome social, promovem campanhas contra a discriminação e criam penalidades para atos transfóbicos. Por outro lado, os projetos contrários se concentram nas áreas de educação, saúde e esportes, propondo desde a proibição de terapias hormonais até a restrição do uso de banheiros e a imposição do sexo biológico como critério de participação em competições.
Divergências regionais e ideológicas
Pernambuco lidera entre os estados que mais aprovaram leis favoráveis às pessoas trans, com quatro projetos, seguido por Acre e Maranhão, com três cada. A maior parte dessas propostas (16) tem origem em partidos de esquerda, como PSB, PDT, PSol, PCdoB e PT. No entanto, há exceções: três PLs aprovados foram de autoria da deputada Socorro Pimentel (União Brasil), e outros dois vieram de parlamentares do MDB e do Podemos, partidos de centro.
Entre os estados que mais aprovaram leis restritivas, o Amazonas aparece com três normas sancionadas, seguido de Maranhão e Alagoas, com duas cada. A maioria dessas propostas (sete) foi apresentada por parlamentares de partidos de direita, enquanto uma foi de centro e outra, uma colaboração entre centro e direita. Esses projetos incluem, por exemplo, proibições ao uso de bloqueadores hormonais e à linguagem neutra, além da vedação ao uso de banheiros unissex.
A divisão ideológica também é marcante entre os autores das propostas: dos 344 projetos apresentados por parlamentares de esquerda, 99% buscam ampliar direitos. Já dos 233 PLs propostos por deputados de direita, 84% são de restrição. Ainda assim, há sinais de transversalidade: entre os 416 PLs pró-direitos, 37 são de autoria exclusiva de parlamentares de direita.
Pico em 2023 e temas predominantes
O ano de 2023 marcou o pico de propostas relacionadas à população trans, com 218 textos protocolados — o equivalente a 33% de todos os projetos apresentados no período. A maior parte desses PLs está concentrada em três temas principais: segurança, nome social e inclusão no mercado de trabalho.
Na área de segurança, são comuns projetos que obrigam o registro de casos de violência contra pessoas trans em boletins de ocorrência ou estabelecem penalidades para estabelecimentos que discriminem essa população. Em seguida, vêm as propostas sobre o uso do nome social, com 53 PLs que garantem esse direito em escolas, concursos e órgãos públicos. A terceira maior frente é o emprego, com 38 textos que propõem, entre outras medidas, cotas em concursos públicos.
Outros temas recorrentes incluem: administração pública (35 PLs), saúde (34), educação (27), campanhas contra discriminação (21), punições à transfobia (18), assistência social (14), esportes (10), sistema penitenciário (8), uso de banheiro (3) e linguagem (2). As 18 propostas que preveem sanções por atos transfóbicos são, em sua maioria, posteriores a 2019, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu criminalizar a LGBTfobia.
Restrição em foco: escola, esporte e saúde
No campo das propostas restritivas, o destaque é para o tema da educação, com 69 projetos, três deles referenciando diretamente o movimento "Escola Sem Partido". Em seguida, aparecem os PLs voltados ao esporte (38), que tentam limitar a participação de pessoas trans com base no sexo biológico. A área da saúde ocupa o terceiro lugar, com 35 propostas que, em sua maioria, buscam proibir terapias hormonais.
Outros temas sensíveis são o uso de banheiros por pessoas trans — foco de 32 projetos — e a proibição da linguagem neutra, que aparece em 29 textos. Tais propostas têm gerado forte repercussão em audiências públicas e nas redes sociais, muitas vezes polarizando o debate entre parlamentares e militantes.
Veto de governadores e tramitação
Apenas três projetos de lei estaduais relacionados a pessoas trans foram vetados no período. Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (Novo) barrou um projeto do deputado André Quintão (PT) que previa sanções a empresas por discriminação de orientação sexual ou identidade de gênero. Já no Maranhão, o governador Carlos Brandão (PSB) vetou dois projetos da deputada Mical Damasceno (PSD): um contra a linguagem neutra e outro que proibia banheiros multigênero.
No geral, entre os 416 PLs favoráveis, 121 foram arquivados (29%), 265 seguem em tramitação (64%) e apenas um foi rejeitado. Do lado das propostas contrárias aos direitos LGBTQIA+, 74 foram arquivadas (30%) e 162 continuam tramitando.
Concentração no Sudeste e ausência no Norte
O Sudeste concentra a maior parte dos projetos: São Paulo e Rio de Janeiro somam juntos 279 PLs — 153 da Assembleia Legislativa paulista (Alesp) e 126 da Alerj. Em São Paulo, 77% das propostas são favoráveis aos direitos LGBTQIA+ e, no Rio, 70%. Já na outra ponta, estados como Tocantins e Rondônia registram apenas um projeto relacionado ao tema cada, enquanto Acre, Piauí e Roraima somam três PLs por unidade federativa.
Para o CEO da Nexus, Marcelo Tokarski, os dados revelam uma dinâmica complexa: “É notável a concentração do debate no eixo Rio-São Paulo, que tem forte influência nacional e maior cobertura da mídia. Apesar do grande número de PLs que restringem garantias, também houve avanços importantes na expansão de direitos LGBTQIA+ no período analisado”, afirma.
O levantamento da Nexus oferece, pela primeira vez, uma visualização completa e sistematizada da atuação legislativa estadual em relação à população trans. O resultado escancara uma disputa em curso nos parlamentos locais, marcada por avanços, retrocessos e um embate político que segue em aberto.